EDITORIAL
Cerrando
fileiras
Recentemente, no Congresso do Movimento
Europeu, em Haia, Mário Soares proferiu um discurso no qual
prestou homenagem aos iniciadores da «grande aventura da
constução europeia»; enalteceu os caminhos entretanto
percorridos e os resultados alcançados; e sublinhou a
necessidade de «ir mais além» (
) e de «dar um novo
impulso à construção política e social de uma Europa
alargada».
«O Congresso que há 50 anos se realizou na cidade de Haia, sob
a presidência de Winston Churchil» foi, segundo Soares, o ponto
de partida para a construção desta União Europeia. Vivia-se,
então, um tempo em que «a Europa, cansada dos horrores da
guerra» (
) «reclamava a paz e pretendia lançar-se,
rapidamente, na via da reconstrução e do desenvolvimento» para
o que, sempre segundo Soares, «compreendera ser decisivo
estabelecer laços de generoso entendimento entre países antes
inimigos» (
) «na base da igualdade e do respeito pelas
liberdades e pelos direitos humanos dos cidadãos europeus».
É impossível acompanhar Soares nesta idílica visão dos acontecimentos e das intenções dos respectivos protagonistas. É claro que ninguém duvida que a Europa estava farta de guerra mas poucos duvidarão que o povo miudo estava muito mais farto do que os ilustres congressistas de Haia. Basta lembrarmo-nos que o presidente desse Congresso, Churchil, era o mesmo que, três anos antes, já «a pensar na guerra fria», ordenara o bombardeamento de Dresde (cidade alemã sem quaisquer alvos militares e totalmente desprovida de defesa) provocando 120 mil vitimas; era o mesmo que, dois anos antes, proferira o célebre discurso de Fulton (lido por ele mas escrito com a colaboração de Truman e do financeiro Bernard Baruch); era o mesmo que definira como tarefa do futuro «ajudar a construir e manter uma ordem mundial suficientemente estável para permitir que as economias avançadas do mundo funcionem sem ter que fazer frente a constantes interrupções e ameaças procedentes do Terceiro Mundo» - tarefa esta que exigiria «intervenções rápidas das nações avançadas» e, se necessário, «acções preventivas» contra as «nações atrasadas»; era o mesmo que, por alturas do Congresso referido por Soares - e, portanto, na fase de construção da nova ordem decorrente da 2ª Guerra Mundial - escrevia: «o governo do mundo deve ser confiado a nações abastadas e que não desejam para si próprias mais do que o que já têm. Seria perigoso que o governo do mundo estivesse nas mãos de nações pobres» ( ) «a salvaguarda da paz deve confiar-se aos povos que vivem dos seus próprios meios e que não são ambiciosos. Somos como homens ricos que moram em paz dentro das suas casas». Não se pode ser mais claro e só por inconcebível ingenuidade se poderia pensar que quem tais ventos semeia tenha em mira outra coisa que não seja desencadear fortes tempestades... As afirmações e práticas acima referidas retratam exemplarmente os métodos, os conceitos, os objectivos, enfim a «generosidade» do presidente do Congresso que, segundo Soares, deu início ao processo de construção da União Europeia Processo esse que, diga-se em abono da verdade, tem conseguido assimilar e incorporar a essência do pensamento do estadista britânico sobre a matéria, como a realidade tem evidenciado em todos os momentos cruciais da construção desta União Europeia.
Lembramo-nos do Tratado de Maastricht e da
forma como, no caso concreto de Portugal, por vontade do PSD e do
PS, foi recusada a realização de um referendo que permitisse ao
povo português pronunciar-se sobre tão importante questão. E o
mesmo se passou noutros países onde as sondagens deixavam prever
uma recusa do Tratado. Além de que em alguns dos países que
recorreram ao referendo, valeu tudo - inclusive a repetição do
referendo e o aviso peremptório de que ele se repetiria tantas
vezes quantas as necessárias... - para assegurar a vitória do
«sim».
Mais recentemente, quer a aprovação do Euro quer a nomeação
do presidente do Banco Central Europeu - operações que
dir-se-ia terem sido concebidas há 50 anos por proposta de
Churchil
- exibiram os mesmos atropelos democráticos que
têm caracterizado todo o processo e deixaram claro e sem margem
para quaisquer duvidas que quem manda são as «nações
abastadas» e que, mesmo entre estas, há uma que manda mais do
que as outras.
«O Euro teve um parto difícil, e só quem nestes Conselhos se
apresenta habitualmente numa posição de aluno bem comportado,
é que pode estranhar os "egoísmos nacionais"
manifestados na maratona negocial para resolver a presidência do
BCE» - observou Carlos Carvalhas, Secretário Geral do PCP. Na
verdade o Banco Europeu, autêntico clone do Bundesbank, tem o
presidente que a Alemanha quis; Marcelo e Guterres aplaudiram com
entusiasmo - mas teriam aplaudido com igual entusiasmo se o
presidente fosse o que a França queria; e Guterres que esperou -
ao que parece na cozinha - que Kohl e Chirac decidissem - na sala
de jantar - quem seria o presidente do BCE, afirmou-se, por tudo
isso, «orgulhoso como português e como europeu» (diz-me do que
te orgulhas, dir-te-ei quem és).
De facto, só alunos muito bem comportados poderão compartilhar o entusiasmo de Mário Soares face à evolução verificada até agora e o seu optimismo quanto à previsível evolução futura do processo. A verdade é que, no que respeita a Portugal mas não só, todo esse processo assenta na ausência de auscultação da opinião do(s) povo(s), na inexistência do debate plural, no silenciamento ou no menosprezo das vozes não concordantes, na utilização repetida da prática do facto consumado, no desprezo sistemático pelos direitos democráticos dos cidadãos. E nada indicia alterações nesta situação. Muito pelo contrário.
Aos que se opõem a esta Europa do capital e lhe contrapõem a perspectiva de uma Europa social de facto, abre-se o caminho da luta por esse objectivo. Luta que se sabe difícil mas que é necessária. Luta que se sabe prolongada mas que é indispensável. Luta a travar no espaço de cada país e no espaço da Europa. Unindo forças, esforços e vontades, cerrando fileiras.