Já se sentem os efeitos da primeira fase da privatização da EDP
Os lucros estão primeiro
... e a electricidade só vem depois


Quase um ano depois da primeira alienação de capital da Electricidade de Portugal (holding que reúne quase dezena e meia de empresas do sector eléctrico, resultantes do desmembramento da empresa pública), o Governo avança com a segunda e a terceira fases da privatização. Não sendo obrigatória a ordem dos nomes com que foram baptizadas, a segunda fase consistirá na venda directa de 4,5 por cento do capital da EDP a um ou dois parceiros estratégicos, enquanto a terceira — a decorrer em finais de Junho — culminará em mais uma operação pública de venda na Bolsa de Lisboa.

No final, o Governo ainda admite que ficará no Estado um pacote correspondente a 50 por cento das acções mais uma.

O «Avante!» procurou saber como vêem as organizações representativas dos trabalhadores mais este passo na venda da EDP. Para tal, conversámos com Artur Malheiro, coordenador da CT (mais precisamente, da coordenadora que reúne as 14 comissões de trabalhadores do Grupo EDP) e dirigente da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores das Indústrias Eléctricas de Portugal, e José Machado, membro do Conselho Nacional da CGTP e coordenador da FSTIEP/CGTP-IN.

«Avante!»:Quer a CT, quer a FSTIEP, têm-se manifestado contra a privatização, nomeadamente quando da sua primeira fase (30 por cento do capital), em Junho do ano passado. Há alguma diferença nos motivos que então justificaram aquela posição relativamente às razões por que hoje se opõem à continuação da linha privatizadora?

Artur Malheiro: Enquanto há um ano falávamos daquilo que supúnhamos que iria acontecer com a privatização, hoje falamos daquilo que já está a acontecer. Se há um ano prevíamos algumas «desgraças» para este sector e os seus trabalhadores, hoje já falamos da grande diminuição que houve no número de trabalhadores, depois de a administração ter definido uma meta de redução de 2500 postos de trabalho até ao ano 2000. O ritmo da redução teve que acelerar, para poder chegar a este objectivo.

Aumentaram enormemente, por isso mesmo, os ritmos de trabalho; os trabalhadores não saem em função de estarem mais ou menos ocupados, mas sim em função da antiguidade ou da disponibilidade para aceitar a rescisão. Como resultado, trabalhadores com grande experiência estão a deixar a empresa e não são substituídos.

A empresa investe muito menos, e há uma degradação na qualidade dos serviços.

Isto eram coisas que nós prevíamos que acontecessem... e que vão continuar. A qualidade de serviço vai piorar ainda mais, porque a prazo vão sentir-se os efeitos de medidas como passar a fazer cada três ou quatro anos manutenções que deveriam ser feitas cada dois anos.

Hoje já se sente que há mais avarias, com os piquetes, agora concentrados, a demorarem mais tempo a acorrerem a essas avarias.

Dizíamos que uma empresa que presta um serviço essencial às populações e à economia do País não deveria enveredar pela procura do lucro a todo o transe. E o que vemos hoje é que toda a gestão da EDP é feita num só sentido: não o serviço público e a qualidade, mas sim a rentabilidade e os menores custos.

José Machado: Quando a FSTIEP e os sindicatos associados reagiram fortemente contra a primeira fase da privatização da EDP, esse combate assentou numa questão fundamental: a privatização da EDP surgiu como decisão política, que não tinha subjacente nenhuma razão técnica ou económica, que tivesse em conta o interesse do Estado ou dos trabalhadores. Considerámos que havia uma aceleração do processo de privatização, por parte do Governo, interessado no encaixe financeiro para reduzir o défice do Estado e cumprir um dos critérios de convergência exigidos para a moeda única. Isto para nós era claro.

Mas também acentuámos as implicações sérias que a privatização teria. Hoje está comprovado que essas implicações se verificaram. Na EDP, hoje, aparece a imoralidade dos interesses, dos grupos, das pressões e dos negócios. Por responsabilidade grave deste Governo, pela degradação da sua gestão e pelo conjunto de interesses que a envolvem, a EDP deixou de ser uma empresa com uma gestão ao serviço do interesse público.

O tempo confirmou as razões do nosso combate contra a privatização, na primeira fase — eliminação de postos de trabalho, degradação do serviço público, ataque aos direitos dos trabalhadores.

Diziam que a privatização da EDP iria prejudicar os trabalhadores, os consumidores e o País. Têm conhecimento de alguns casos que confirmem a justeza deste alerta?

AM: Com a fixação de reduzir custos, nalguns centros de distribuição os trabalhadores têm que ir trabalhar ao domingo, o dia em que podem ser feitos cortes de corrente. Mas, para esses custos não aparecerem na contabilidade a agravar os custos, o director propõe que não recebam a remuneração a que têm direito pelas horas trabalhadas a troco de dias de férias. Além desta ilegalidade, também não são pagas ajudas de custo de almoço.

Há uma degradação enorme dos serviços médicos da EDP. Os serviços médicos passaram para uma nova empresa, que funciona também com a filosofia do lucro, o que exige redução de custos e piora a qualidade.

Os consumidores, que também aparecem a protestar, estão cada vez mais a pagar facturas por estimativa, uma vez que as leituras deixaram de ser feitas mensalmente, para serem feitas de quatro em quatro meses e, agora, vão passar para seis meses. Com a generalização da estimativa, a facturação apressou-se e houve imensos casos em que, num mês, os consumidores receberam duas facturas para pagar.

Ainda citando apenas alguns exemplos, há já autarquias que se queixam de que o planeamento e o investimento para o desenvolvimento da rede eram feitos em função de um levantamento das necessidades, hoje o critério é fazer primeiro o que vai render mais.

José Machado: Tenho aqui alguns documentos dos sindicatos, preparados para um levantamento nacional das implicações da privatização. E há casos gravíssimos de degradação do serviço público e do próprio serviço da EDP.

Há equipas de higiene e segurança que não têm meios para se deslocarem! Isto, que era impensável numa EDP pública, coloca em causa a defesa da segurança, da saúde e dos próprios equipamentos.

Foram desmanteladas equipas especiais de intervenção em média e alta tensão, e a empresa entregou estes trabalhos a empreiteiros de deficiente qualidade.

Neste estudo dos sindicatos há uns 40 ou 50 exemplos nesta linha.

A privatização foi defendida e preparada pelos governos do PSD e é acelerada pelo Governo do PS. Justifica-se lutar contra uma orientação que é partilhada pelos dois maiores partidos e cuja concretização já vai tão adiantada?

JM: Nós entendemos que se justifica, em absoluto, manter o combate e a crítica. O Governo dá sinal de uma clara falta de seriedade política neste processo. Primeiro, avançou com os trinta por cento e, nessa primeira fase, glorificou a disseminação do capital. Avisámos, na altura, que por trás desta operação estavam grandes grupos internacionais perfilados para controlar o capital social da EDP e assumir uma posição forte na sua gestão. Passados meses, o Governo veio decidir vender 4,5 por cento do capital a um parceiro estratégico. Afinal — apesar das divisões que há mesmo no próprio Governo sobre se o parceiro deve ser espanhol ou alemão, ou talvez acabem por ser dois parceiros — a disseminação não é tão boa como diziam e sempre há outros interesses.

Outro motivo para continuarmos o combate à privatização é o facto de o Governo hoje, já não dizer que só privatiza 49 por cento, mas diz que vende 50 por cento menos uma acção. Isto não é sério. O Governo quer ir além dos 50 por cento, mas não tem condições políticas para isso. E nós vamos continuar a contribuir, com a nossa acção, para que o Governo não tenha mesmo condições políticas para o fazer.

Além da falta de seriedade, este limite dos 50 por cento menos uma acção coloca outras questões. O Governo cedeu acções à Caixa Geral de Depósitos e cedeu acções à CP, em condições que não conhecemos com toda a profundidade, e não se sabe como vai ser a movimentação dessa acções no futuro. Não está claro, neste quadro, que a privatização da EDP não acabe por deixar o Estado com menos de metade do capital. E isso terá um repúdio forte dos trabalhadores.

AM: Não vamos desistir da luta contra a privatização, apenas porque já está feita a mais de 30 por cento e porque quem detém o poder pretende uma EDP privatizada. Mesmo quando não vivíamos em democracia, lutávamos contra o poder, por considerarmos que tínhamos razão, portanto não é isso que nos vai demover hoje.

Os próprios trabalhadores da EDP que votaram no PS não acreditam que o Governo possa vir a ceder a maioria ao capital privado.

Como comentam as alterações na administração da EDP?

AM: Não tem que haver confiança política relativamente aos gestores das empresas públicas, eles têm é que gerir bem. A lógica contrária é a que conduz à história dos «boys» e a situações surpreendentes, como esta: um elemento da coordenadora do PS na empresa chegou a considerar publicamente ilegal a constituição da empresa para tomar conta dos Serviços Médicos da EDP, mas a seguir aceitou ser administrador dessa mesma empresa.

Nós reclamamos a mudança de política, não a substituição de administradores ou ministros.

Quando das eleições de 1995, houve grande expectativa entre os trabalhadores, muitos dos quais votaram no partido que hoje está no Governo porque o PS e as suas estruturas na EDP defendiam alterações radicais na política de Cavaco Silva. Defendiam o retorno à empresa única, reclamação que era um forte motivo de união dos trabalhadores nessa altura.

O certo é que o novo Governo apenas alterou o estilo de privatização (vender a holding e não empresas separadas) e acelerou o processo.

O presidente agora demitido já tinha sido nomeado pelo Governo do PS. Independentemente das fortes queixas quanto à forma ditatorial como actuava e aos grandes exageros no aproveitamento de regalias, a verdade é que ele executou na perfeição as orientações políticas que lhe traçaram. E não foi demitido por fugir a essas orientações.

Agora foi demitido, leva cem mil contos, entre indemnização e comparticipação nos lucros... E, escândalo dos escândalos, este homem, que é reformado da Banca, vai ficar com direito a usufruir dos serviços médicos da empresa!

Bom, e se é verdade o que tem vindo nos jornais, o mesmo homem que não tinha perfil para gerir a EDP e a quem o Governo deu tão rico castigo pode acabar por ter perfil para continuar a gerir património público.

JM: Sempre encarámos a administração da empresa como o executor de uma política, definida pelo Governo e o Ministério da Tutela. Não são eles que decidem a privatização, nem a tabela salarial.

Mas vemos com muita indignação a imoralidade instalada na relação entre o Governo e a EDP e a partidarização da gestão de empresas públicas. Condenamos que o ministro da Economia, que já reuniu com as demais estruturas dos trabalhadores da EDP mas recusa receber a mais representativa, a FSTIEP, vá reunir regularmente no Largo do Rato com o núcleo do PS na EDP para tomar decisões de fundo sobre a empresa.

Como vai desenvolver-se a vossa intervenção?

JM: Vamos virar-nos novamente, nesta terceira fase, para os trabalhadores, para os consumidores e para a opinião pública. Tencionamos fazer, com o contributo dos trabalhadores, uma compilação das implicações da privatização para o serviço público e para as condições de trabalho. Vamos dizer aos consumidores que se confirmaram os nossos avisos, vamos mostrar-lhes exemplos do grande desinvestimento feito na EDP que está a degradar a qualidade do serviço.

Pensamos realizar, coincidindo com a terceira fase da privatização, uma tribuna pública de opinião. E vamos voltar à Bolsa no dia em que tiver lugar a OPV.

Naturalmente, iremos convidar personalidades, organizações sociais e de consumidores, autarquias, o Instituto de Defesa do Consumidor, os grupos parlamentares, técnicos e especialistas, que poderão dar o seu contributo para uma avaliação do erro político e económico que é esta privatização e a sua continuação.


O valor da unidade e o preço das acções

Quando do desmembramento da EDP e, mais tarde, na primeira fase da privatização, foi visível, até em manifestações de rua, a unidade dos trabalhadores e até das diferentes estruturas representativas. As vantagens concedidas para a compra de acções conseguiram vergar este espírito de unidade contra a privatização?

JM: Agora, como já na primeira fase, os trabalhadores debatem-se com uma contradição. Todos compreendem que a privatização é um erro, que não tem fundamento técnico nem económico; mas, perante o facto consumado da decisão política, olham para o significado das mais-valias que a privatização pode trazer.

Tivemos, como estruturas sindicais, cuidado e respeito pela opção individual dos trabalhadores e pela manifestação dos seus interesses particulares. O que estava em causa para nós não era a opção de cada trabalhador quanto à compra de acções, mas sim a decisão política da privatização.

No conjunto das organizações sindicais da empresa, a FSTIEP assumiu sem equívocos o combate contra a privatização.

As outras organizações perderam-se em ambiguidades e claro oportunismo — por um lado, tinham um discurso esbatido admitindo que a privatização não teria interesse; mas, por outro lado, houve uma intervenção forte para a compra de acções e até alimentaram nos trabalhadores a expectativa de poderem vir a ser gestores da empresa, por essa via. Isto foi uma aldrabice, uma irresponsabilidade e um oportunismo político, como nós na altura expressámos claramente.

Na segunda e terceira fases estamos mais convictos da nossa razão, mas estamos conscientes de que outras organizações não têm convicção nem moral para fazer o combate sindical que nós fazemos à privatização.

AM: Há unanimidade, entre os trabalhadores, no apoio à análise que nós fazemos e à denúncia de que, com privatização, pioraram as condições de trabalho e a qualidade do serviço. Os próprios sindicatos que, demagogicamente, dizem que os trabalhadores podem ser donos da EDP — são organizações sem implantação na empresa — também fazem comunicados com as mesmas denúncias que nós fazemos, só não chegam às mesmas conclusões.

Agora, na terceira fase, não vai haver nenhuma unidade na acção com estas estruturas. Uma organização vai andar a ver se compra acções ou a tentar que os trabalhadores comprem. Como hoje também é evidente, a EDP foi vendida a preço de saldo. Os trabalhadores compraram acções e já as venderam, já realizaram mais-valias. Ao contrário do que essa organização dizia, não ficaram com acções.

A outra organização, embora compreenda e aceite os nossos argumentos, está de tal modo enfeudada ao Governo, que não vai fazer uma denúnica pública como nós.

Na CT não se notam dificuldades em tratar agora este tema?

AM: Não. Tivemos recentemente, em meados de Março, eleições para as comissões de trabalhadores das empresas do Grupo EDP, e as listas unitárias — que no seu programa se manifestaram contra a privatização — ganharam esmagadoramente em quase todas.

Na CPPE, empresa de produção, verificou-se a maior votação de sempre da lista unitária; ficámos com 6 mandatos, em 11, e faltaram apenas dois votos para ficarmos com 7. Na REN (transporte de electridade), a lista unitária obteve 4 mandatos em 7.

Na distribuição ainda é maior a diferença: 8 mandatos em 11, na EN (Norte) e na LTE (Lisboa e Vale do Tejo); na SLE (Sul) só se apresentou a lista unitária e, mesmo assim, houve cerca de 70 por cento de votantes.

O espírito de unidade dos trabalhadores não será indiferente ao facto de, por decisão unânime das CTs das várias empresas, ser feita uma lista única para a comissão coordenadora.

Por tudo isto, estou certo que a CT também tomará posição contra mais este passo na privatização — a não ser que surja algum caso de cegueira política.


«Avante!» Nº 1277 - 21.Maio.98