Indonésia
A grande incógnita


À hora do fecho desta edição desconhecia-se ainda o resultado da jornada nacional de manifestações agendada para ontem na Indonésia. Numa altura em que os acontecimentos se precipitam e a todo o momento surgem novas incógnitas na complexa equação indonésia, a única certeza que parece adquirida é que o reinado de Shuarto está achegar ao fim, 32 anos depois de ter mergulhado o país numa feroz repressão e na mais brutal exploração.

De acordo com as informações disponíveis, as dissidências no campo de Suharto não param de aumentar. Na hora da derrocada, os fiéis do regime mudam rapidamente de campo, procurando no compromisso a solução que permita a sua sobrevivência política e económica.

Tendo em conta as características do regime, tudo vai depender da posição dos militares. Que posição será essa é uma incógnita a que ninguém parece capaz de responder. Aparentemente, tudo gira em torno do poderoso general Wirianto, ministro da Defesa e chefe das Forças Armadas, que segunda-feira veio a público afirmar ser ilegal o apelo do Parlamento à demissão de Suharto, e garantir que os militares estudam com o Presidente uma solução para a crise.

O que significa isso de facto? Que Wirianto se prepara para ser ele próprio a alternativa a Suharto? Que as Forças Armadas - que não impediram a anarquia dos últimos dias e chegam mesmo a confraternizar com os manifestantes - vão agora tomar conta da situação? Ou que estão dispostas a caucionar uma mudança de cosmética? Ou ainda que as divisões entre as altas patentes militares - em particular entre Wirianto e o general Prabowo Subianto, genro de Suharto, que chefia o Comando de Reserva Estratégica do Exército, com 27 mil homens - são tão profundas que todas as partes procuram ganhar tempo para garantir as suas posições e a sua quota parte do poder?

Todas as alternativas parecem em aberto num país onde a oposição civil mal começou a dar os primeiros passos para se organizar. Segundo um analista financeiro citado pelo 'El País', «face à ausência de uma oposição política claramente organizada, os mercados tendem a pensar que a salvação vai vir do Exército». Os chefes militares «não podem tolerar a ideia de disparar contra o povo», pelo que, conclui o analista, «uma parte do Exército deseja que Suharto chegue à conclusão de que o melhor seria retirar-se com honra, o que equivaleria a uma espécie de golpe de Estado encoberto».


À espera de Washington

A questão que se coloca - e a que a jornada de luta de ontem pode ajudar a dar resposta - é se depois de ter vivido a semana mais sangrenta dos últimos trinta anos a população indonésia está disposta a aceitar uma mudança de cenário que deixe tudo, ou quase tudo, na mesma.

Ao apostar na mobilização de um milhão de indonésios em Jacarta, e mais meio milhão noutras cidades, a novíssima oposição liderada por Amien Rais, ex-aliado de Suharto e dirigente de uma organização muçulmana que diz contar com 28 milhões de seguidores, não escondeu o temor de que a jornada de ontem pudesse acabar num banho de sangue. «Suharto será responsável pelas novas mortes que venham a registar-se daqui em diante», disse Rais. Curiosa afirmação. Quem são então os responsáveis pelas mortes que ocorreram até agora?

Amien Rais, Megawati Sukarnoputri, e as dezenas de intelectuais e antigos colaboradores do regime que dão corpo ao chamado Conselho Popular, a nova organização política emergente na Indonésia, estão longe de formar um bloco homogéneo com propostas comuns para o futuro do país. Aproveitando a dinâmica criada pelas manifestações estudantis e o movimento de revolta popular provocado pela crise económica, os opositores de Suharto têm apenas uma exigência em comum com os milhões de indonésios que nos últimos dias saíram à rua: a demissão de Suharto. Quanto ao futuro, é difícil encontrar pontos de afinidade.

Em declarações públicas, o dirigente muçulmano já afirmou que, caso venha a sentar-se na cadeira do poder, não deixará de recorrer à 'ajuda' do FMI. «Sem dúvida que o FMI é a única alternativa», diz, enquanto acena aos EUA, cujo apoio moral considera indispensável para a «concretização dos esforços de democratização». Amien Rais espera um sinal de Washington, mas a Casa Branca mantém-se silenciosa. Num jogo tão baralhado como este, os EUA preferem esperar para ver. Afinal, a Indonésia de Suharto sempre foi um fiel aliado.

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A crise anunciada

A violência registada na Indonésia contra a população de origem chinesa, que controla três quartas partes da riqueza do país, não é nenhum fenómeno novo. Entre 1965 e 1966, após o derrube de Sukarno, a comunidade viveu um ano de terror. Então, os saqueadores não hesitaram em matar os comerciantes. Agora, 'limitaram-se' a roubá-los e a destruir os seus bens.
As razões para uma tal sanha anti-chinesa radicam na crescente consciência das profundas injustiças económico-sociais existentes na Indonésia, um país onde 80 por cento das 163 companhias cotizadas na Bolsa pertencem a empresários de origem chinesa.
É neste contexto, de resto, que se pode compreender o verdadeiro caos em que mergulhou a Indonésia. Os primeiros sinais de que o país podia explodir a qualquer momento surgiram em 1997, quando os mercados asiáticos entraram em crise e a rupia se desvalorizou, num curto espaço de tempo, cerca de 60 por cento.
Incapaz de controlar a situação, Suharto é forçado a aceitar, em 15 de Janeiro, as duras exigências do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o saneamento da economia.
O FMI, recorda-se, impôs medidas drásticas de liberalização económica, o encerramento de empresas consideradas inviáveis, a suspensão de uma série de projectos governamentais e a supressão de subsídios. O resultado foi o despedimento de milhões de trabalhadores e uma subida brutal do custo de vida.

A crise acentuou-se em 1998 e a fome das multidões despojadas do mínimo para a sobrevivência passou a falar mais alto.


Os dias da revolta

Os primeiros confrontos de vulto ocorrem a 2 de Fevereiro, quando na sequência dos aumentos de bens essenciais se registam graves distúrbios em Java e nas ilhas Celebes. A polícia reprime os manifestantes, provocando vários mortos em Lombok. Segue-se uma aparente acalmia, durante a qual Suharto é 'reeleito' por aclamação na Assembleia do Povo, dominada pelo partido oficial, Golkar.
A situação precipita-se em Maio, após Suharto afirmar que não haverá reformas políticas até ao final do seu novo mandato, em 2003.
No dia 4, enquanto se realizam manifestações de protesto em várias cidades do país, os estudantes ocupam o campus universitário. Dois dias depois, em confrontos com a polícia, duas pessoas são assassinadas em Medan, na Sumatra. A 12 de Maio, violentos confrontos entre forças policiais e estudantes resultam na norte de seis universitários. A população sai à rua em protesto contra a repressão e os distúrbios generalizam-se em Jacarta.
Cada vez mais incontrolável, a situação interna obriga ao regresso antecipado de Suharto do Cairo, onde se encontrava em visita oficial. Numa tentativa de conter os protestos, o Presidente anuncia uma baixa dos preços de bens essenciais. É já demasiado tarde. A população em fúria exige agora a sua demissão, os assaltos a estabelecimentos sucedem-se, os bancos distribuem dinheiro na tentativa de evitar os saques, a moeda entra em queda livre. Em apenas uma semana a rupia desvaloriza-se 20 por cento e a sua cotação acaba por ser suspensa.
A 16 de Maio, num assalto a um centro comercial, centenas de pessoas morrem vítimas do próprio fogo que haviam ateado. Suharto destitui o Governo, enquanto vai anunciando que não se demitirá a não ser que o 'povo assim o decida', segundo as normas constitucionais, o que significa deixar a decisão nas mãos da Assembleia onde desde sempre se sentam os seus familiares e apoiantes (85 por cento dos seus membros são nomeados pelo próprio ditador). As Forças Armadas anunciam que pelo menos quinhentas pessoas morreram nos tumultos dos últimos dias.
Os estrangeiros fogem do país.
A incipiente oposição começa a organizar-se: Amien Rais, líder muçulmano, alia-se com Megawati Sukarno-putri e forma o Conselho Popular, movimento político que exige a demissão de Suharto. Ambos, juntamente com os estudantes e diversos sectores sociais, a que se juntam elementos do Golkar e inúmeros generais na reforma, marcam para 19 de Maio uma marcha contra Suharto.
Entretanto, no dia 18, estudantes de 56 universidades do país concentraram-se junto ao Parlamento, para exigir que a assembleia debata o futuro do país. Os militares não só não intervêm como permitem que uma delegação estudantil entre nas instalações do Parlamento, onde apresentam as suas reivindicações. No mesmo dia, o Presidente da Assembleia Nacional, Harmoko, pede a Suharto que se demita, no que é secundado terça-feira pelo próprio Parlamento.

É o fim do reinado de Suharto. Resta saber quem é o senhor que se segue.

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INDONÉSIA
Alguns dados

História: Ocupado por Portugal de 1511 a 1570, o país cai em seguida sob o domínio holandês. Durante um ano (de 1810 a 1811) foi colónia francesa, passando depois para as mãos dos ingleses. Em 1824, o tratado de Londres divide o mundo malaio entre a Inglaterra (Malásia) e a Holanda (Indonésia). Após o fim da ocupação japonesa em 1945, e de uma tentativa sangrenta de reconquista holandesa, a República da Indonésia é formalmente criada em 1950.

Capital: Jacarta.

Superfície: 1.913.000 Km2. O país é formado por mais de 13.000 ilhas, das quais três mil habitadas, sendo a densidade populacional é de 105 habitantes por quilómetro quadrado.

População: 202 milhões de habitantes.

Moeda: rupia.

Principal religião: islâmica.

Chefe de Estado: General Suharto desde Março de 1968, que efectivamente controla o poder desde o golpe de Estado que derrubou o Presidente Soekarno. Nos três que se seguiram ao golpe de Estado foram massacrados cerca de 500.000 comunistas e outros democratas.

Línguas: indonésio, malaio, javanês, para além de mais de 200 dialectos regionais.

Mortalidade infantil: 58 por mil.

Esperança de vida: 62,7 anos.

Analfabetismo: 16,7 por cento.

Ocupação: Mais de metade da população activa (46 por cento) trabalha na agricultura.

PIB: O Produto Interno Bruto por habitante era em 1995 de 3.800 dólares, o que situava o país em 87º lugar mundial, num conjunto de 175 países. Em termos de desenvolvimento, a Indonésia ocupa o 99º lugar mundial num total de 175 países.


«Avante!» Nº 1277 - 21.Maio.98