Droga e branqueamento de capitais

Entrevistas com Francesco Forgione e François Auguste
conduzidas por Margarida Folque

Aproveitando a sua participação no Forum promovido pelo PCP sobre droga e branqueamento de capitais, o «Avante!» falou com Francesco Forgione, da Direcção Nacional do Partido Refundação Comunista, deputado da Assembleia Regional siciliana e membro da comissão parlamentar anti-mafia, e François Auguste, do Conselho Nacional do PCF e responsável da luta contra a droga. Quis saber, designadamente, a sua opinião sobre esta iniciativa dos comunistas portugueses.


Francesco Forgione:
«Paraísos fiscais» no coração da Europa


Como membro da comissão anti-mafia da Sicília, pode dizer-nos qual a dimensão e como se caracteriza hoje a mafia em Itália?

Como uma grande organização criminal, empresarial e financeira. Que sofreu grandes golpes por parte do Estado no plano militar mas que continua a manter uma grande força económica e financeira e uma grande capacidade de condicionamento da política e das instituições. Isto, para além do controlo do território em quatro grandes regiões da Itália - Sicília, Nápoles, Calabria e Puglia -, respectivamente por quatro grandes organizações - Cosa Nostra, Camorra, 'Ndrangheta e Sacra Corona Unita.

Há, portanto, uma ligação profunda às instituições e ao Estado?

Em Itália a relação entre a política e a mafia foi sempre uma relação muito forte. Basta lembrar que estiveram envolvidos em processos por associação mafiosa um ex-chefe de Estado de estatura mundial, como Andreotti, e quatro ministros do Governo italiano. O número três dos serviços secretos italianos, Bruno Contrada, foi condenado, no ano passado, a dez anos de prisão por ter favorecido a mafia.

Foi essa grande penetração no aparelho do Estado, na burocracia, na economia, na finança que permitiu à mafia ter, nos últimos cinquenta anos, tamanho poder económico. É uma verdade que começa agora a emergir no plano judiciário e no plano político. Ou seja, para além de saber se Giuglio Andreotti pode ou não ser condenado é também importante saber que Giuglio Andreotti e a democracia cristã têm sido o suporte da mafia, nos últimos vinte anos, na Sicília.

Mas a mafia conta também com o medo das pessoas?

Como diz a lei italiana, a mafia «vale-se do poder intimidatório da violência para conseguir o máximo lucro». Esta é a definição sobre associações mafiosas que consta do código penal. Serve-se da violência e da pobreza das pessoas. Onde a crise económica e social é mais forte é também mais forte a sua capacidade de intervir sobre os processos económicos, de dar trabalho, de distribuir riqueza, de fazer o que o Estado e as estruturas económicas não fazem.

Que tipo de medidas têm sido tomadas no combate à mafia?

Está em discussão o melhoramento da legislação anti-mafia.

Há, entretanto, a lei La Torre (que tem o nome do seu primeiro signatário, deputado do Partido Comunista Italiano e secretário do PC da Sicília, assassinado pela mafia em 1982), que prevê a apreensão do capital, e uma nova lei que prevê a confiscação do capital e do património dos mafiosos. Ainda na semana passada, em Corleone, a vila de Toto Rina foi apreendida, confiscada e entregue ao município de Corleone. Agora é um centro social e uma biblioteca.

Eu creio ser este o principal objectivo, no momento: golpear a mafia no coração dos seus interesses - o capital e as finanças -, confiscar-lhe os bens e entregá-los à sociedade e controlar toda a actividade de branqueamento.

Sob este ponto de vista, o Forum de Lisboa foi importante.

Sim, porque a partir do momento em que as organizações criminais podem movimentar os capitais via internet deixa de haver qualquer controlo sobre o tráfico de capitais. O que exige a transparência dos mercados e dos capitais, a abolição do sigilo bancário e a observação, depois, de todas as actividades de cobertura da actividade ilegal.

Em Itália, por exemplo, a facturação da mafia é avaliada em 150 mil milhões/ano. Destes, 55 mil milhões vêm do tráfico da droga. Ou seja, a mafia é, praticamente, a segunda empresa italiana, depois da Fiat de Agnelli, pela capacidade de acumulação da riqueza do capital.

Tornou-se, então, mais fácil o branqueamento?

Dentro da economia legal encontramos, neste momento, um terreno propício ao branqueamento, devido ao processo de privatizações e a um liberalismo cada vez mais selvagem que pressupõe o desaparecimento das formas de controlo de regulação do mercado, ao mesmo tempo que invade a economia legal com capitais ilegais e favorece o relançamento da mafia.

Eu julgo que vamos entrar numa fase em que teremos actividades lícitas geridas e alimentadas por capitais ilícitos.

Para isso também contribui o euro?

Sim, porque o euro favorece a circulação de capitais mas não questiona nem controla a natureza e a qualidade desses capitais. Se a Europa dos bancos e dos mercados, não conseguir chegar a um direito internacional mínimo - ao menos numa base europeia - para combater o branqueamento, arrisca-se a colocar dentro de si os «paraísos fiscais» do Sul-América, do Centro-América, das Caraíbas.

Também aqui as forças de esquerda devem recuperar uma autonomia de análise e de crítica dos processos de modernização capitalista, com os quais as organizações criminais e os capitais criminais estão a tornar-se factor não só compatível mas orgânico.

O que tem a esquerda a dizer sobre os lucros fáceis? Como se beneficia socialmente o terreno onde a mafia, através da protecção, da usura ou do controlo do mercado do trabalho, encontra alimento e força?

Pode dizer-se que o PCP, com o seu Forum, já contribuiu para essa reflexão?

Claro. E penso que é significativo que se tenha realizado em Lisboa, onde aparentemente não existe um problema de mafia e de criminalidade. Mas, se aprofundarmos a análise, descobrimos que Portugal hoje, pela colocação geográfica, pelo acesso do Atlântico à Europa, pode ser um dos pólos fundamentais não só do narcotráfico mas também do branqueamento de capitais.

É igualmente importante que a iniciativa parta do PCP porque eu creio que neste momento só a esquerda pode obrigar ao controlo da actividade criminal.

Também nós, comunistas, pensamos ter em Itália, no Outono, uma iniciativa a nível europeu sobre o tema.

A Refundação Comunista defende a despenalização da droga?

Foi aprovada ontem na comissão de justiça do Parlamento, por proposta da Refundação Comunista, a despenalização do acto de consumo, sobretudo no que respeita às drogas ligeiras. Ou seja, que a repressão, em vez de se exercer sobre os pequenos consumidores se exerça sobre os traficantes. Isto, tendo em conta que, em Itália, 55% dos encarcerados, estão-no por delitos ligados à droga e que 30% dos toxicodependentes das prisões estão infectados com o vírus da Sida.

Trata-se, pois, de um problema de intervenção social. Sobretudo na área de maior sofrimento juvenil, de maior sofrimento social, nos bairros degradados, periféricos, onde a solidão profunda conduz ao consumo da droga e à marginalidade.

Vamos agora ver como vai agir o Parlamento.

Quando se fala em branqueamento liga-se geralmente à droga. Mas existem outras actividades...

De facto, a segunda principal actividade da mafia italiana é o tráfico das armas que provêm, sobretudo, do potencial bélico e militar do ex-Pacto de Varsóvia. Aliás, uma parte do exército do ex-Pacto de Varsóvia está à cabeça das grandes organizações criminais russas e dos países de leste. Trata-se de um tráfico que diz respeito ao potencial militar bélico mas também ao potencial militar nuclear, para os países da África, do Sul-América onde há conflitos regionais. Em Itália, foram encontrados em poder de mafiosos mísseis nucleares terra-aéreos do ex-Pacto de Varsóvia, pacotes de urânio e de componentes nucleares.

Neste momento, os países de leste são uma verdadeira zona franca para todas as actividades económicas e criminais ilegais. Até pelos processos de liberalismo selvagem que aí existem.

Que sucessos se têm verificado na luta anti-mafia?

No centro-sul, o nosso partido tem um slogan que se pode sintetizar assim: «Luta social e luta contra a mafia». Porque a luta contra a mafia é a outra face da grande questão social no sul de Itália, onde se concentra 20 a 30 por cento do desemprego.

É a própria degradação social, o desemprego, a desagregação da sociedade civil organizada que permite à mafia radicar o seu poder. Um poder que, em certo sentido, e dada a falta de perspectivas, arrisca-se a ser «a última possibilidade» que se oferece às pessoas desesperadas de ter um trabalho na sociedade, alguma capacidade económica, algum futuro.

É por isso que, no centro-sul, fazemos da luta contra a mafia e da luta social um ponto de identidade política do Partido. Sabendo que é difícil, porque até na esquerda, na esquerda moderada, a aceitação acrítica do mercado e da dinâmica do mercado, fazem baixar o nível de análise do combate à mafia. Assim, apoiamos por um lado a magistratura - que nos últimos anos teve a capacidade de pôr a nu a ligação entre a mafia a política, entre a mafia e as instituições -, e pedimos que se vá sempre mais alto ao nível do poder do Estado. Mas, por outro lado, consideramos que sem uma nova etapa da luta social e sem um novo modelo de desenvolvimento - dentro do qual a mafia não tenha qualquer papel, capacidade ou força económica -, não haverá sucesso contra o poder criminal.

Caso contrário, o risco é que se regenere, nesta fase de liberalismo selvagem, aquela a que nós chamamos a «burguesia mafiosa», isto é profissionais, categorias económicas e sectores da burocracia que têm vivido, enriquecido e tido um avanço social com a mafia, não estando em condições nem com vontade política de romper todas as ligações com ela e com este modelo de desenvolvimento.

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François Auguste:
É preciso avançar na prevenção


Qual é a posição do PCF quanto à questão de despenalização da droga?

Um certo número de pessoas deseja o levantamento desta proibição, quer a despenalização ou mesmo a legalização do uso da droga. Não é o ponto de vista do PCF - pensamos que é necessário manter o interdito social e, simultaneamente levamos em conta evoluções importantes que se deram sobre este assunto, nomeadamente na política de cuidados após a lei de 1970. A legislação francesa sobre este problema data de 1970, portanto desde há quase trinta anos. Houve evoluções importantes depois dessa altura.

A solução para os consumidores da droga não pode ser a prisão - por vezes é o contrário que se dá, entra-se na prisão como pequeno consumidor e sai-se como grande traficante. É necessário portanto encontrar soluções alternativas, soluções terapêuticas ou mesmo sanções judiciais, mas pensamos que é preciso distinguir entre consumidores de droga - muitas vezes jovens que se encontram já com dificuldades, com trabalho precário ou no desemprego, jovens que sofrem e merecem um tratamento humano e solidário - é preciso distingui-los dos grandes traficantes e dos autores de branqueamento do dinheiro da droga, para os quais, evidentemente é necessário manter a repressão. É necessário, como se viu neste fórum, encarar reformas ainda mais audaciosas que permitam perseguir e punir com maior severidade os autores do branqueamento e os grandes traficantes. É esta a posição do PCF sobre esta questão precisa - manter ou não a proibição da droga.

Falou-se de prevenção. Mas concretamente, que medidas se encaram?

Somos favoráveis a que sejam atribuídos meios mais importantes no Orçamento do Estado a favor da prevenção primária e de todas a medidas de prevenção, em particular na escola - pensamos que se trata de um lugar importante na prevenção - mas também nos bairros e colectividades. A prevenção é a nosso ver insuficiente e portanto é necessário tomar outras medidas e atribuir outros meios. Trata-se de um debate que abrange a política social. Não é fácil obter meios orçamentais suplementares, dado que temos um orçamento espartilhado pelos critérios de Maastricht. Pensamos que é nesse sentido que é preciso caminhar - desbloquear meios suplementares a favor da prevenção.

O camarada focou um aspecto que geralmente não é abordado e me parece importante e que é - como agir em relação aos países produtores para conseguir a redução da produção de droga?

Trata-se de facto de uma questão decisiva e essencial. Há um aumento considerável da produção de drogas no mundo inteiro. Há praticamente uma explosão do fenómeno. E há responsáveis, há causas - a queda das matérias primas nos anos 80, a crise da dívida. Os países capitalistas têm responsabilidades essenciais na situação, pois que, para fazer face aos graves problemas que decorrem desta política, os camponeses produtores viram-se para a produção de plantas de droga que rendem muito mais, evidentemente, que o cacau ou outras matérias primas. Portanto, como fazer face ao problemas quando os grandes traficantes obtêm substanciais lucros? Repare-se que a diferença entre o preço de um quilo de cocaína fabricada num país produtor e o seu preço de venda na França ou nos Estados Unidos, é um preço multiplicado por 2000! É um lucro fabuloso e fácil, obtido pelos grandes traficantes, enquanto os camponeses recebem menos de um por cento desse lucro.

Isto tem a ver com a questão das relações entre os países produtores e os países consumidores. Creio que há medidas a tomar, uma política de cooperação a levar a cabo para ajudar os países produtores, para ajudar os camponeses a encontrar culturas que sejam alternativas à produção de droga.
Isso exige medidas muito específicas e directas, de modo a que sejam desbloqueados meios para ajudar esses agricultores a reduzir a produção de droga. São medidas difíceis de tomar no plano internacional, já que a relação de forças é o que é, mas creio que não se pode renunciar a levar a cabo acções nos planos europeu e internacional - a Europa, o Parlamento Europeu podem contribuir para o estabelecimento de novas relações entre os países produtores e os países consumidores.

No fundo estão detectadas as grandes bases de branqueamento de capitais - os chamados paraísos fiscais e o sigilo bancário... No caso do sigilo bancário, a verdade é que nenhum país avança com medidas, porque serão impopulares. Como reagiria, por exemplo, a opinião pública em França?

Trata-se efectivamente de uma questão muito importante para lutar contra o branqueamento do dinheiro da droga. Um certo número de medidas foram tomadas no plano internacional desde os anos 80, foram concluídos acordos e convenções no Conselho da Europa, nas Nações Unidas, que vão no sentido da abertura do sigilo bancário. O Conselho da Europa, em 1980, obrigou, por exemplo, à declaração de identidade quando da abertura de uma conta - o que antes não era o caso. Foi um progresso. Recomendações do GAFI - Grupo de Acção Financeira Internacional -, que datam de 1989, vão no sentido da declaração de suspeita por parte dos bancos. E houve um certo número de declarações que foram feitas, cerca de 1500 em França, neste período. São medidas relativamente recentes. Em nossa opinião, a questão é aplicar as recomendações feitas - porque são insuficientemente aplicadas ou de modo muito desigual, há países que escapam a estas recomendações e alguns nem sequer as reproduziram nas suas legislações. Pensamos mesmo que estas não são suficientes - propomos reformas mais audaciosas e importantes para se obter um levantamento mais franco do sigilo bancário, de modo a que novos direitos sejam instituídos para os empregados dos bancos e das empresas que permitiriam ajudar e alertar acerca de movimentos fraudulentos de capitais relacionados com o branqueamento da droga.
Há ainda o problema da prova, que levantei no fórum - e não estive sozinho, ouvi magistrados levantarem o mesmo problema, pois que hoje em dia é à justiça que compete o ónus da prova de que há branqueamento de capitais, o que torna tudo mais complicado. Há portanto aí uma reforma a fazer - a nível europeu e internacional de modo a que seja aplicada em toda a parte -, de maneira a que sejam os traficantes e os branqueadores a provar a sua honestidade. Seria muito mais difícil para eles, e muito mais fácil persegui-los.
Creio que se começaram a tomar algumas medidas porque as potências capitalistas começam a inquietar-se com a desestabilização que tudo isto pode trazer aos seus próprios circuitos e mercados financeiros. Mas essas potências não querem, por outro lado, erradicar o fenómeno com eficácia porque, se se atacasse realmente o problema do dinheiro sujo, facilmente se concluiria que não há apenas o dinheiro da droga, há aquele das negociatas, há a evasão fiscal, chega-se ao coração do sistema financeiro internacional e do sistema capitalista... Nós, pelo contrário, pensamos que é necessário dominar o mercado financeiro para que o dinheiro não leve à acumulação financeira, mas para que sirva ao desenvolvimento humano.

Mas o branqueamento de capitais, hoje, não diz respeito só à droga, nem fundamentalmente à droga. Há o tráfico de armas, a prostituição, o jogo...

Aí também se regista alguma evolução. Na definição do delito e do crime de branqueamento, a evolução vai no sentido de uma definição que não diga respeito exclusivamente à droga, mas que seja mais alargada e que abranja o que acabou de dizer. Aqui também há progressos a fazer. É necessário, por exemplo, conseguir definir o crime de associação mafiosa, de criminalidade organizada.
Se é verdade que se diz que este tráfico ameaça o equilíbrio dos mercados financeiros, há outras medidas, nomeadamente na União Europeia, que vêm facilitar o branqueamento. Por exemplo, a instituição do euro é uma medida que o facilita.
Sim, aliás, disse-o na minha intervenção - pode de facto ser a mais formidável operação de branqueamento de dinheiro sujo que jamais existiu pois, em dois anos, 1500 biliões de francos podem ser branqueados pela compra massiva de euros. Mas pode ser, simultaneamente, a ocasião de desmascarar e descobrir os autores de branqueamento. Para tal seria necessário haver vontade política e tomar medidas no sentido do que já dissemos - o levantamento real do sigilo bancário, o controlo mais estrito das sociedades off-shore, dos paraísos fiscais - todas as medidas no sentido de lutar eficazmente contra o branqueamento do dinheiro da droga. Se tais medidas fossem tomadas - e é preciso actuar para que tal seja feito - poder-se-ia desferir um golpe severo no branqueamento de dinheiro.

Uma última pergunta: acha que o fórum realizado ajudou de alguma forma ao combate ao branqueamento de capitais ligados à droga?

Penso que se tratou de uma excelente iniciativa que o Partido Comunista Português tomou. Porque esta é uma questão um pouco tabu, o que acontece também em França, onde se fala pouco do problema. A iniciativa de Lisboa certamente contribuiu para instalar um debate - e também à escala europeia - e para sensibilizar a opinião pública. Congratulo-me por esta iniciativa e faço votos e espero que ela tenha prolongamentos não apenas em cada um dos países respectivos mas na realização de outras iniciativas à escala europeia, entre as forças progressistas, para juntar cada vez mais forças e contribuir para que soluções e acções positivas sejam desenvolvidas e levadas por diante.


«Avante!» Nº 1277 - 21.Maio.98