MAIO de 68
em debate


Maio de 68 - Um tema quase inesgotável nas suas múltiplas referências e dimensões - desde os extraordinários acontecimentos de Maio e de Junho de 1968, em França, ao vivíssimo contexto internacional em que ocorreram, à situação e à luta que então se travava em Portugal e às repercussões que o Maio francês teve entre nós, ao que deles perdurou até hoje.

Foi a matéria do debate promovido há dias no Espaço Cultural do Centro de Trabalho Vitória pelo Sector Intelectual de Lisboa. Moderado por José Guilherme, e contando com um painel integrado por Edgar Correia, João Arsénio Nunes, Luís Cília, Mário de Carvalho e Sandra Monteiro, o debate prolongou-se por mais de três horas. O seu prosseguimento e aprofundamento justificará certamente outras oportunidades de discussão.

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Edgar Correia:

Nós, os comunistas portugueses, estamos numa situação particularmente privilegiada para debater os acontecimentos de Maio de 68 porque poucos anos depois vivemos os desafios e as experiências de uma revolução no nosso próprio país, naturalmente em condições muito diferentes, numa sociedade que em vários aspectos estava muito menos avançada do que a sociedade francesa. Éramos, porém, membros de um Partido que tinha um programa revolucionário, aprovado no VI Congresso, em 1965, o programa que estabelecia os objectivos e definia as tarefas a realizar na Revolução Democrática e Nacional e que a ligava à perspectiva da Revolução Socialista tal como era então a visão dos comunistas. Um programa revolucionário é de extrema importância em todas as circunstâncias. Mas quando uma sociedade entra num período revolucionário ele é absolutamente decisivo.

Referindo de seguida alguns aspectos que estiveram presentes a nível internacional e que de alguma forma se cruzaram entre nós com o Maio de 68, EC destacou a guerra do Vietname que era apaixonadamente seguida em Portugal, particularmente no meio estudantil, citando a propósito a primeira acção pública que se realizou em Portugal e que teve lugar na Universidade do Porto em Fevereiro de 1968, numa altura em que estava anunciada uma visita do embaixador americano, protesto esse que foi da iniciativa dos estudantes comunistas. Em relação ao ano de 68 em Portugal destacou ainda o movimento grevista dos trabalhadores, com uma grande greve dos pescadores em Matosinhos, em Abril, lutas em Maio em muitas empresas e sectores, protestos estudantis em Lisboa e nas outras universidades e, em 3 de Agosto desse ano, um acontecimento que iria acelerar toda a vida política nacional: Salazar sofreu um acidente e menos de dois meses decorridos foi substituído por Marcelo Caetano.

O trabalho continuado realizado no período 65-68 na Universidade do Porto pelas organizações estudantis do PCP, permitiram que o Partido contasse em 1968, entre militantes e simpatizantes, com centenas de ligações, o que viria a reflectir-se numa intervenção grande quer nas movimentações estudantis e democráticas de 68 e 69, quer depois nos anos terminais do combate ao regime fascista.

Em 68, na cidade do Porto, havia uma universidade com um movimento associativo algo tardio, não muito institucionalizado, cujo conteúdo fundamental se situava no terreno do que designávamos na altura por sindicalismo estudantil, o qual foi depois crescentemente influenciado pelos problemas de natureza política e ideológica trazidos pelo Maio de 68, pelo aparecimento de uma grupuscularização quase espontânea, com expressões por vezes muito surpreendentes, de jovens que se proclamavam anarquistas, trotskistas, maoístas diversos, guevaristas, etc.. Esse "processo de grupuscularização" e o seu "activismo", apesar do carácter anárquico e muitas vezes inconsequente, contribuiu para um alargamento dos temas que se debatiam na universidade entre os estudantes, os quais passaram, assim, dos temas associativos, das questões reivindicativas concretas e que aparecia também ligado às questões políticas da liberdade, dos direitos, e da guerra colonial, para uma situação muito mais ideologizada, com a multiplicação de cursos livres e de edições de textos marxistas, com debates em que a disputa se fazia em torno de textos de Marx, Lenine, Mao Tse Tung, Trotski, etc., debates inflamadíssimos e por vezes muitíssimo pouco preparados e fundamentados porque conhecíamos mal os textos e argumentávamos deficientemente como se pode calcular.

Muitos desses grupos de natureza esquerdista foram desenvolvendo uma crescente hostilidade em relação aos jovens militantes do PCP que eram um bocado bombardeados por tudo: porque o PCF "tinha traído" a luta dos trabalhadores... porque as tropas do Pacto de Varsóvia tinham invadido a Checoslováquia... porque na China... Mas apesar de tudo, porque tínhamos muita influência e havia batalhas democráticas muito importantes a travar, nós conseguíamos envolver e mobilizar para elas muitos dos jovens pertencentes a esses grupos.

Na perspectiva da reflexão política sobre os acontecimentos de Maio e Junho em França, há hoje um ponto incontornável para os comunistas e que é este: a avaliação da postura e das avaliações do Partido Comunista Francês e das organizações sociais por ele influenciadas, designadamente a CGT, em todo o processo. Tem interesse acompanharmos a própria reflexão que os comunistas franceses estão a fazer nesta matéria. Há pouco mais de 15 dias, o Secretário Nacional do PCF Robert Hue afirmou que "o Maio de 68 deixou conquistas sociais formidáveis" e que ele próprio guardava da sua experiência pessoal boa recordação "do que tinham ganho com o aumento do salário mínimo e com os direitos sindicais", mas que hoje - e como dirigente comunista - lamentava "que enquanto PC tivessem tido talvez um olhar sobre 68 que estava com os olhos postos nos anos 50 e que teria sido necessário ir bastante mais longe".

Não tendo e sobretudo não pretendendo ter respostas fáceis, é legítimo que nos interroguemos: se de facto em Maio de 68 em França estivemos ou não perante uma situação revolucionária, produto daquela autêntica comuna estudantil, que marcou e marca uma época, e da sua conjugação com aquela que foi a maior greve de massas da história mundial (foram 10 milhões de trabalhadores em greve, com empresas ocupadas, durante semanas) e com o grau de organização, de consciência política e revolucionária da classe operária francesa.

Há muitas outras questões que podemos desdobrar. É o problema da dialéctica do social, incluindo o cultural, e político. Da relação das organizações com os movimentos de massas. Das mutações económicas, sociais e culturais e, no fundo, todo o problema das novas fronteiras das lutas de classes nas sociedades contemporâneas. Quer dizer, há muitas questões em que, creio, Maio ainda nos desafia e que justificam perfeitamente que as tivéssemos chamado ao nosso debate. Um partido comunista, numa perspectiva de superação do capitalismo, não se pode atrasar nem pode ser simplista no estudo das sociedades, particularmente quando essas sociedades são muito complexas, e são múltiplos os factores que intervêm (nos planos económico, social, político e cultural), porque esse atraso de análise é que leva depois a que, no plano político, surjam situações imprevistas ou que não são compreensíveis, pois enquanto o partido está a pensar noutra realidade, não está a ver a realidade que tem de facto pela frente.


Mário de Carvalho:

O Maio de 68 aparece já numa fase muito tardia, quando o movimento estudantil português já estava numa grande e importante movimentação. Em 65, o Partido sofreu em Lisboa, no meio estudantil um golpe repressivo muito intenso, foi praticamente destruído. Ficaram uns restos, ficaram "umas pontas" - como nós dizíamos naquela altura. E entre 65 e 68, precisamente, procurámos reorganizar o Partido de uma maneira extremamente paciente, pegando aqui, pegando além, com um trabalho que era bastante discreto, mas que tinha de ser feito, de facto. Em todo o caso, em 68 já o Partido estava de qualquer forma a recuperar. Estávamos envolvidos em coisas que vieram a ter importância - lutas em torno de um programa de oito pontos, que foram cozinhadas no Jardim da Parada, ali nos Prazeres, com o Alberto Costa, concretamente, e que depois não vieram a ser desenvolvidas. A organização do Partido começava de novo a ter alguma projecção, algum impacto até com o recrutamento de gente nova que ia aparecendo.

No que respeita ao Maio de 68 penso que a grande importância que teve, por um lado, foi acelerar e incentivar o esquerdismo à nossa volta. O ambiente era de facto sob esse ponto de vista, medonho. O Partido era referenciado não só pela polícia mas também pelo esquerdismo no movimento estudantil. Havia um pouco a ideia de que o Partido era de certo modo institucional, fazia parte das instituições a destruir. E havia gente que não tinha pejo nenhum em se lançar contra o Partido, em o denunciar, e em sabotar e contrariar qualquer decisão que suspeitassem que viesse do Partido. Nós tínhamos sempre pela frente este cerco que era constante e que era alimentado com toda a gesticulação e gritaria que vinha de França.

Penso que onde o Partido não se enganou nas suas análises foi quando caracterizou certa juventude como estando transitoriamente numa posição revolucionária. Nós dizíamos, e bem, se calhar, pseudo-revolucionários. Juventude que vamos depois encontrar mais tarde e já o prevíamos nessa altura, confortavelmente instalada em lugares de poder. Nisto, de facto, acertámos em cheio.

Dentro do Partido havia ecos esquerdistas das movimentações em França. Discussões do nosso organismo com o clandestino que nos vinha controlar, e eram exactamente sobre o papel do PCF em França. Nós entendíamos que o PCF, a vanguarda, devia assumir o controlo, a cabeça da situação e causava-nos alguma estupefacção o papel, que considerávamos passivo, do PCF em relação aos acontecimentos, não tomando a cabeça dos acontecimentos e não fazendo a revolução.

Nem sempre havia por parte do Partido uma compreensão muito clara do que era o meio estudantil e havia um tendência grande e que nos irritava muito, para subestimar este peso do esquerdismo e do populismo e todas estas coisas que, às vezes as mais absurdas, todos os dias nos apareciam pela frente e que embaraçavam e contrariavam e que não eram propriamente produto da generosidade estudantil, mas era de facto uma força que procurava localizar e abafar o trabalho do Partido. Havia de facto, por parte de muitos camaradas, uma grande condescendência em relação a isto. Pensavam que eram fases em que os jovens estavam, mas enfim.. aquilo havia de chegar a bom porto. Em contrapartida as pessoas que nos apareciam, normalmente da direcção do Partido, traziam uma coisa que nos fazia falta e que era bom senso.

A palavra contestação era uma palavra que na altura estava em vigor, andava em todas as bocas. Tratava-se, penso eu, no fundo, de opor uma posição, a uma outra posição. A contestação, a negação do que quer que se considerasse que era reaccionário, terminologia que não entrava dentro do Partido. A preocupação com uma caracterização que pretendíamos científica das situações e a utilização das nossas próprias palavras e da nossa própria terminologia para nós era extremamente importante. Nisso consistia aquilo a que se chamava a educação dos quadros, de maneira que nós repudiávamos um pouco essa intrusão de palavreado alheio.

A minha experiência foi mais esta. De grande sobressalto, de grande preocupação, o Partido a crescer, até que depois, enfim... fomos todos presos!


Sandra Monteiro:

Queria sobretudo chamar a atenção para aspectos que me parecem importantes, então como agora, e que este tipo de movimento coloca.

O primeiro tem a ver com o facto de ser importante a participação, e a participação exercendo crítica política, em movimentos da mais variada ordem, sejam movimentos suscitados por nós (não só no caso do Partido Comunista Português, mas no caso de outros partidos comunistas também), ou seja, movimentos nos quais nos pareça importante participar por via do interesse das questões que sejam aí levantadas. Creio que esse é um aspecto que continua hoje actual, isto é, o de saber como é que se participa em movimentos, qualquer que seja o sentido, quer estejam a trabalhar em questões muito globais quer em questões mais particulares, como é que se exerce a crítica nesse movimento. O Mário de Carvalho já falou de aspectos até materiais que acabam por determinar a forma como se participa nuns e noutros, da informação que se tem ou não, da documentação que se pode ler, mas queria sobretudo chamar a atenção para a importância de participar de uma forma crítica e informada.

O outro tem a ver com o facto de eu achar que ainda hoje algumas das questões centrais que eram colocadas no Maio de 68 serem ainda questões importantes.

Eu seleccionaria como um valor importante, fundamental, na minha opinião, da contestação que surgiu não só em França, mas também nos E.U.A., em Itália, em Portugal, o questionamento das relações de poder e da autoridade. Ora eu creio que esse problema foi colocado não apenas ao nível das relações dos indivíduos entre si, mas ao nível das relações dos indivíduos com as instituições. Esse questionamento directo, frontal, muitas vezes, se calhar com muito pouco bom senso, mas muito importante, foi feito tanto ao nível dessas relações de poder que se estabeleciam nas instituições universitárias, como nessas relações nos locais de trabalho, nas fábricas, etc.. Mas igualmente ao nível da família no que diz respeito ao quadro das relações entre as gerações e entre homens e mulheres, questionando papeis sociais.

Daí que essas questões hoje continuem absolutamente actuais. Se calhar algumas dessas relações de poder assumiram formas mais subtis, mas noutros casos não, estando absolutamente reveladas e até assumindo alguns traços de maior conservadorismo do que já tiveram no passado. É evidente que há uma série de razões muito materiais que nós poderíamos apontar para ajudar a explicar que isto aconteça; os problemas do desemprego, introduzindo um medo em contestar, muitas vezes pelo receio da perda do emprego; ou então quando se passa para o nível da moral familiar, da moral sexual, problemas que têm a ver com fenómenos mais recentes, como as questões da SIDA, etc.. Mas a verdade é que estas questões são hoje muito actuais e nós vamos sempre deparando com elas no quotidiano, por exemplo quando se põem questões como esta que vai com certeza ocupar-nos e vai fazer-nos ver ressurgir muitos fantasmas e muitos restos de conservadorismo na sociedade portuguesa, como vai ser a questão do referendo sobre o aborto.


Luís Cília:

Penso que se tivesse havido bom senso em Paris, em Maio de 68, nós não estávamos aqui a falar do Maio de 68. Penso que a coisa interessante do Maio de 68 foi o mau senso. Não houve bom senso em lado nenhum. Vivendo em Paris, naquela altura, e vivendo ao pé do "Quartier Latin", ao mesmo tempo eu tinha um grupo com a Colette Magny e com o Paco Ibañez, íamos cantar onde nos chamassem, onde houvesse ocupação de fábricas. O ambiente que me lembro mais do Maio de 68, para mim, foi o ambiente vivido aqui logo a seguir ao 25 de Abril de 74, de euforia e de um grande sentido de liberdade, só com uma diferença, é que logo a seguir ao 25 de Abril toda a gente se abraçava e em Paris quase toda a gente atirava paralelepípedos à polícia. Foi a única diferença que vi.

A minha opinião é que o que acabou de ser dito é um bocado o que se passou, porque por mais voltas que se dê aquilo foi mais ou menos um movimento espontâneo que ultrapassou os partidos políticos e o movimento sindical, pelo menos no princípio.

Quando eu falo do bom senso é que de facto, quando lá estava, não havia bom senso possível a ter. Aquilo transformou-se numa coisa, que enquanto durava, durou. As pessoas estavam conscientes de que era uma posição que não se podia eternizar, um país completamente parado. Se eu fosse raciocinar politicamente, talvez tomasse posições mais críticas, mas como experiência humana foi das mais ricas que já tive na minha vida porque foi a única vez que eu vivi uma situação de total liberdade, em que a frase "é proibido proibir" fazia sentido. Ninguém se coibia de falar com quem quer que fosse... Chegava-se a qualquer lado e falava-se com todos.

Falar a 30 anos de distância, hoje, talvez não torne a coisa muito perceptível, mas de facto vivia-se um clima de mau senso que, sob o ponto de vista humano foi muito enriquecedor enquanto durou.

A comunidade portuguesa, como toda a gente sabe, era resultante de uma emigração económica. A maior parte dos portugueses que estavam em França eram pouco politizados, mas porque os portugueses também foram envolvidos pelas ocupações das fábricas, não há dúvida nenhuma de que também participaram. Depois os comités de ocupação pediam a mim, ou ao Paco Ibañez para irmos cantar para esses portugueses e irmos falar de outras coisas, como por exemplo, da guerra colonial.

Tenho impressão de que aquilo ao princípio foi um movimento de revolta estudantil, puramente, que tinha à frente alguns dirigentes com grande carisma, e nesse aspecto o Cohn-Bendit era de facto um orador extraordinário. Um mês antes de eclodir o movimento houve um debate na televisão com o Ministro da Educação - porque o Governo tentou fazer um debate com os estudantes pensando que ali, em 5 minutos, dava cabo deles - e de facto o Cohn Bendit arrasou-o de forma extraordinária. Creio que ele teve, nesse aspecto importância como líder estudantil.

Ao princípio, foi um movimento estudantil que acabou também por se radicalizar devido à brutalidade das intervenções da polícia. Creio que foi um movimento que foi crescendo e a partir de um determinado momento se expandiu por toda a sociedade.

Tenho a impressão que acabou com uma cisão nítida entre o movimento operário e o movimento estudantil. A partir do momento em que o movimento operário teve negociações com o governo, o movimento foi acabando.

À pergunta se alguma vez o Governo tremeu ? Acho que sim. Nós não podemos esquecer que o De Gaulle, num dado momento em Maio, foi para a Alemanha e esteve lá uns tempos.

E à questão sobre se o movimento se tivesse radicalizado não se podia ter ido para outra situação em França, penso que sim. Há uma fase em que o Estado e as forças repressivas perdem todo o controlo do momento que se vivia em França, mas o exército também não se envolve no lado contrário. O exército nunca mostrou que podia reprimir ou que podia actuar. Penso que o exército se manteve mais ou menos neutro durante aquele mês.


João Arsénio Nunes:

Penso que é claro - talvez aqui não tenha sido suficientemente sublinhado - que o Maio de 68 não foi um fenómeno exclusivamente francês mais o reflexo em Portugal. Foi um fenómeno europeu e mundial. O aspecto mundial está presente para todos nós quando pensamos no Vietname e mais globalmente no conjunto das transformações mundiais dos anos 60. Convém sublinhar que, mesmo no aspecto do movimento estudantil e operário teve uma expressão fortíssima, com impacto na história social e política dos últimos 30 anos, nomeadamente, em relação ao que começou a passar-se na Alemanha e depois em Itália.

Em qualquer destas situações e também naquilo que se viveu em Portugal, desde essa época e em especial no período do 25 de Abril, parece claro que há duas componentes que são à partida relativamente distintas. A componente operária e a componente pequeno-burguesa e, quando digo pequeno-burguesa não é um chavão - obviamente o movimento das massas estudantis foi uma forma de expressão numa conjuntura concreta do comportamento de um extracto da pequena burguesia que não foi maioritário. Para o De Gaulle ter a maioria da população, como teve, é porque realmente a pequena burguesia das classes médias não alinhou ou recuou rapidamente em relação ao sentido dos acontecimentos e sobretudo em relação à solidariedade com o movimento operário.

Sobre os múltiplos aspectos ideológicos do Maio de 68 e de todo esse período, o Mário de Carvalho exprimiu o lado, digamos, de reacção comunista típica da época, aliás, com uma franqueza notável e louvável, a muitos aspectos do anarquismo, se assim se pode dizer, e penso que pode, das componentes anarquizantes ou libertárias, se quiserem individualistas, do período, que em Portugal também tiveram projecção. Quanto a mim, embora mantendo-me no quadro do pensamento marxista-leninista, identificava-me com a tendência, com o sentido da contestação social e cultural que via em todo esse processo e, naturalmente com a contestação cultural que abrangia e incluía imensos aspectos da ideologia, da linguagem do estilo dos partidos comunistas.

Não podemos subestimar, o que aliás foi colocado em relevo pela Sandra, na sua intervenção inicial, a importância que o aspecto de crítica de certas relações de autoridade, e de afirmação individualista, tiveram neste período. Não é só o folclore de Maio, que deu origem a frases belíssimas e a outras bastante mais idiotas - houve de tudo -, mas o sentido geral dos processos desses anos e das transformações que deles resultaram não pode ser subestimado. Quer dizer, a noção, hoje, da autonomia individual, com projecção na situação, nomeadamente dos jovens, das mulheres também, até numa parte decisiva, foi uma transformação cultural de enorme importância.

Por outro lado, para mim a questão teórica foi muito importante: a leitura das obras do Louis Althusser, do Nikos Poulantzas. Nessa época era sobretudo o marxismo francês que influía, e foi importante na crítica de um marxismo-leninismo "canonizado", duma espécie de teologia marxista, muito à volta do humanismo, do progressismo, do historicismo.

Algumas das questões continuam hoje a ser actuais. Penso que se nós em relação a isto medirmos alguns dos problemas postos por aquilo a que se chama o pós-modernismo, veremos que temos mais a aproveitar do confronto com muitas correntes filosóficas contemporâneas do que às vezes nos parece.

O que está na ordem do dia para nós, não é a Revolução Socialista, como aliás já foi aqui referido, mas sim defender e manter as transformações democráticas realizadas sobretudo na sequência do 25 de Abril, defendê-las e mantê-las, o que possivelmente exige um certo número de atitudes revolucionárias e não só de atitudes, mas uma política revolucionária. Se não formos nós a tê-la, obviamente mais ninguém a tem.

A situação de individualismo, sobretudo de corporativismo em que vivemos, é extremamente desagregadora e grave, a solidariedade tende a ser substituída por cumplicidades que no fundo são uma espécie de "salve-se quem puder" colectivo. E se não somos nós de facto a dar resposta a isto as perspectivas são de facto preocupantes.


«Avante!» Nº 1277 - 21.Maio.98