Democracia
e água benta...
José António Saraiva é um poço inesgotável de surpresas anunciadas: mal nos arriscamos a admitir que o seu mais recente texto atingiu o nível máximo do desvario, logo pressentimos, nesse mesmo texto, indícios iniludíveis de que o que se lhe segue irá muitíssimo mais longe. E assim é. Sucessivamente.
Desta vez, JAS foi aos arquivos da sua
memória e encontrou o que quis encontrar: um ex-militante do PCP
que, «um dia, ainda em pleno Estado Novo», lhe disse: «O
Cunhal é o Salazar vermelho». JAS, de boa memória, recorda que
aquela frase o chocou na altura mas, «com o tempo», acabou por
«verificar que a ideia fazia, afinal, algum sentido». Explica
ele assim a «verificação»: «Cunhal como Salazar, era um
homem obstinado, determinado, antiliberal, antidemocrata e
profundamente convencido da sua verdade.»
(A partir desta «verificação» JAS arranca, depois, para uma
análise à situação actual do PCP. Ao seu estilo, ou seja,
análise profunda, rigorosa, sólida - na sequência da qual
produz um espectacular exercício de futurologia. Mas deixemos,
por agora, esse desvio astrológico e voltemos à matéria de
primeiro).
Esta coisa de chamar antidemocratas aos comunistas é arma velha do arsenal do anticomunismo, quer ele se apresente com pezinhos de lã e uniforme de gala democrática, quer se faça anunciar pelo ruído característico das botas cardadas. É fácil, é barato e dá milhões irradiar os comunistas do campo democrático e substituí-los, inclusive, por quem nada fez em defesa da democracia, antes pelo contrário Se JAS esgravatar no Estado Novo da sua memória, há-de encontrar o tempo em que, em Portugal, não havia democracia, pelo que lutar por ela tinha como consequência previsível a prisão, a tortura, às vezes a morte; e há-de constatar que, nessa situação, ninguém mais do que os comunistas lutou pela democracia, assumindo todas as consequências daí resultantes. Mas que importância tem isso? O conceito de democracia em vigor não se compadece com minudências tais. Democracia e água benta cada JAS toma a que quer, pelo que ser democrata é ser JAS ou congénere. Com efeito, JAS é, hoje, director de um semanário de grande tiragem e é tão democrata como era naqueles longínquos tempos em que brincava aos tigres de papel e em que o seu actual patrão - já então prestigiado democrata - era deputado na Assembleia Nacional.
Quanto a Álvaro Cunhal e aos outros militantes comunistas, esses são hoje tão antidemocratas como eram nesses tempos em que se limitavam a antidemocraticamente, combater o fascismo e lutar pela democracia. José Casanova