TVisto

Com toda a frontalidade

Por Francisco Costa


Era grande a cobertura mediática que por aí ocorria, criando justificadas (mas também estudadas e programadas) esperanças em relação ao novo programa que Herman José agora inventara para entreter os espectadores por alguns meses. Se é certo que todas as expectativas em relação a um novo produto audiovisual deste peso regra geral se afiguram plenamente justificadas, também não é menos certo que, submeter-se o crítico à aceitação quase obrigatória de um generalizado unanimismo na apreciação desse mesmo produto, talvez ajude menos a clarificar e a estabelecer o necessário distanciamento em relação a ele. Por isso, para empregar a famosa expressão de uma personagem de Herman já consagrada no linguajar contemporâneo, há que tecer «com toda a frontalidade» algumas considerações, porventura menos consensuais, a propósito da estreia deste programa. Deixemo-las, porém, para mais tarde e comecemos, como é de bom tom, pelos aspectos claramente positivos de «Herman ‘98».

Passando por cima da exagerada e quase histérica movimentação da steadycam, a realização do programa revela-se, do ponto de vista técnico e conceptual, sem dúvida desenvolta e dinâmica, sempre procurando escapar aos tempos mortos e capaz de criar um ritmo televisivo agradável. Também a concepção do cenário, as cores nele utilizadas, a associação ao «apelido» '98 através dos pequenos aquários e a iluminação, bem como a distribuição dos espaços para a sucessão e ligação dos vários números, é muito bem conseguida, apenas se afigurando talvez incómoda (também para o espectador) a altura algo pronunciada da secretária à qual Herman se senta.

Ainda no plano positivo, e mergulhando já a fundo no conteúdo do programa, praticamente todos os sketches nele inseridos vêm dar-lhe o necessário sal e pimenta e estabelecer, aí sim, uma diferença essencial (para melhor) em relação aos habituais formatos dos talk shows de referência – Jay Leno ou Conan O’ Brien, por exemplo – nos quais os anfitriões, não sendo grandes actores, privilegiam o uso e a eficácia de outros trunfos. Nesta primeira emissão, foram na verdade hilariantes as incidências e concepção do sketch reconstituíndo o nascimento, no Café Martinho, da Expo ’98 (!), para já não falar do magistral ritmo interno da peça dedicada ao Padre Frederico, não se sabendo que mais destacar nesta última: se a imaginação da escrita, se o brilhantismo de Maria Rueff no papel de mamãe («’tá na hora do leitinho!»), se a própria composição de Frederico, correndo de chicote atrás do seu rebanho, em saltos altos e cinto de ligas, e gritando cá para dentro «estou inocente!», se, ainda, esse verrinoso desarrincanço do encontro com o pide Rosa Casaco nas «entradas» e «saídas» do Aeroporto. Simplesmente fabuloso!

Mas este lado positivo era, por assim dizer, à partida exigível e também já esperável, escapando afinal ao formato de um talk show, razão de ser deste novo programa. O problema é que os aspectos negativos de «Herman ’98» ofuscam gravemente o assinalável brilhantismo que, em geral, marca a sua concepção. Em primeiro lugar, temos a cópia descarada (e desnecessária) do press release; depois, é indisfarçável o falhanço do top less, que devia ter uma construção audiovisual, eventualmente a partir de telejornais, e não lida e interpretada por Herman José, assim eliminando a preguiçosa e exagerada concentração deste no «teleponto»; mas também a descarada e intolerável situação de subalternidade a que os convidados se vêem votados, transformados que são em meras figuras decorativas ou em simples suporte presencial dos trocadilhos e jogos histriónicos do seu anfitrião, levam-nos muitas vezes a sentir-se obrigados a sorrir de forma amarelada (quando não apatetada) às graçolas de mau gosto que invadem aquele palco. E é precisamente este aspecto que constitui a mais forte reserva à conduta de Herman José, ao qual pelos vistos já não chega a persistente e militante brejeirice com que ofusca o seu génio e talento nas manhãs da rádio pública. Pelo que se viu e ouviu anteontem, ela vai também abundar por ali, subvertendo o brilho de um programa que podia ter uma recepção consensual e agradável.

Sejamos claros: não é líquido que todo o país se tenha transformado num gigantesco auditório rasca e (convenhamos) essa anedota de serviço público em que a RTP desde há muito se transformou já tem suficientes e «competentes» produtos nessa área! Nesta mesma ordem de ideais, o aproveitamento indecoroso e abjecto de Micaela («Chupa no Dedo») não pode deixar de ser considerado como a clara demonstração de uma repelente duplicidade: por um lado, Herman não deixa de convidá-la para sugar-lhe de forma oportunista a «mais-valia pimba» que, pelos vistos, está a dar; por outro lado, aproveita a circunstância para gozá-la e achincalhá-la em público, com um despudor verdadeiramente inaceitável. E é aqui que Herman tem de reflectir muito bem, se estiver interessado em manter a qualidade que, em todas as circunstâncias, no mínimo se lhe exige: uma coisa é ser truculento e picante, outra coisa é ser vulgar e ordinário!

O artista é um bom artista mas, que diabo!, não havia necessidade...


«Avante!» Nº 1277 - 21.Maio.98