EDITORIAL

Auto-estima de quem?


Chegou enfim a Expo'98. Acontecimento da maior relevância, com óbvia dimensão e projecção nacional e internacional, com expressão cultural incontestável, com potencialidades raras de projecção de Portugal no mundo - bom será que a Expo não limite a sua vida aos 132 dias de duração oficial e tenha vindo para ficar. Ou seja, que depois do adeus de milhões de visitantes que por ali irão passar permaneça a firme disposição de a continuar, de dar futuro às suas potencialidades, nomeadamente procedendo à renovação e realização urbanística, ambiental e social da degradada zona oriental da cidade de Lisboa e de parte do concelho de Loures.
A construção da Expo exigiu muito dinheiro, muitos esforços, muita criatividade, muito rigor no cumprimento de prazos de execução. Importa no entanto não descurar o necessário balanço geral, a apreciação minuciosa dos desfazamentos entre previsões e realidade - nomeadamente no que toca às derrapagens financeiras - e a procura das causas e das consequências de eventuais distorções.

Considerando a grandeza do investimento disponibilizado para a construção da Expo e a responsabilidade que tal construção representava para Portugal, não era difícil prever que, no dia da inauguração, ela estaria inaugurável - mais parafuso menos parafuso, mais passeio menos passeio, mais pavilhão menos pavilhão… Daí que as exibições do «nosso orgulho» por ter sido feito aquilo que tínhamos obrigação de fazer naquele exacto tempo, pareçam totalmente descabidas. Mais: a insistência obsessiva do Governo na referência a esse «orgulho», apenas confirma a existência de suadas incertezas e inseguranças quanto à conclusão da obra a tempo e horas. - o que reduz considerávelmente a dimensão do tal «orgulho»...

Incertezas e inseguranças que, aliás, subsistem e agora aparecem traduzidas nos receios - exibidos, porque mal disfarçados, publicamente - provocados pela fraca afluência de público nestes primeiros dias. Receios despropositados já que, vê quem sabe ver, à Expo afluirão milhões de visitantes portugueses e estrangeiros. Seria bom, por isso, que os responsáveis mais directos por esta importante realização serenassem um pouco, acalmassem e não continuassem a dar expressão pública a apreciações contraditórias, a desmentidos de péssimo gosto, a um nervosismo despropositado. É verdade que os números divulgados (uma média de 25 mil visitantes/dia em vez dos previstos 120 mil - com a particularidade de, pelo menos no fim de semana, 50% dos presentes serem estrangeiros) estão muito aquém das perspectivas. Mas talvez isso se deva a que, segundo «A Capital» de 18 de Maio, «o custo de uma deslocação à Expo '98 poderá custar mais de 50 mil escudos a uma família portuguesa média (4 pessoas)» - importância que aos responsáveis da Expo há-de parecer uma insignificância mas que impedirá muitos e muitos portugueses de a visitar.

Preocupante é uma certa visão das coisas que, nos últimos dias, tem vindo a desenvolver-se e a propagar-se como verdade absoluta. Trata-se da ideia de que o mais que previsível êxito da Expo significa, para nós, portugueses, a «recuperação da auto-estima» e do «orgulho nacional». Se tal apreciação se limitasse a ser a manifestação de ridículo provincianismo que também é, não viria daí grande mal. Acontece, no entanto, que há nela estranhos contornos passadistas e um iniludível cheiro a bafio… Fazer uma ligação directa entre a dita «recuperação da nossa auto-estima» e o êxito da Expo significa estimular um unanimista coro de cegos aplausos e condicionar a lucidez de análise e o juízo crítico.

Na verdade, se quisermos falar de recuperação do «orgulho nacional» e da «auto-estima» numa perspectiva de real modernidade, teremos que situar o momento dessa recuperação não na Expo'98 mas no 25 de Abril de 1974 sem o qual, obviamente, não haveria Expo. Com efeito é nesse tempo de conquista da liberdade e da democracia, nesse tempo que iniciou o percurso histórico da dignificação dos portugueses - particularmente dos mais desfavorecidos - que encontramos o momento do nosso maior orgulho e da nossa mais elevada auto-estima, o momento de maior modernidade de facto da História portuguesa actual. Mas não é motivo de orgulho, bem pelo contrário, que esse tempo e esse percurso tenham sido interrompidos por sucessivas políticas de direita que foram retirando direitos e liberdades aos trabalhadores e aos cidadãos, que foram destruindo importantes conquistas então alcançadas, que em aspectos vários conduziram a lamentáveis regressos ao passado. E a «nossa auto-estima» não passará de uma expressão hipócrita se se persistir em olhar embevecidamente para a grande realização que é a Expo esquecendo que, como referiu Carlos Carvalhas na 4ª Assembleia da DORAL, Portugal é o país da União Europeia com maior índice de pobreza e maior concentração de riqueza (10% da população concentra quase metade da riqueza nacional), que Portugal é o país com mais baixo nível de salários, com o mais baixo salário mínimo e as mais baixas reformas, (onde o preço de um cabaz de 30 produtos essenciais é 2,6% superior ao de Espanha e onde os salários são 2,8 vezes inferiores aos espanhóis), que Portugal é um país com um aparelho produtivo cada vez mais dependente e subcontratado.

A não ser que, quando se fala de «recuperação da auto-estima» e do «orgulho nacional» se esteja a falar em nome dos 50 grandes empresários que um dia destes almoçaram com o Governo em Cascais...


«Avante!» Nº 1278 - 28.Maio.98