Na Irlanda do
Norte, após o referendo de sexta-feira
Vai
começar uma nova era
Por Manoel de Lencastre
O povo da Irlanda do Norte, católicos e protestantes, deu na
passada sexta-feira uma demonstração inequívoca do seu desejo
de paz, democracia e progresso ao votar com um «Sim» esmagador
as propostas de alguns partidos políticos e dos governos
britânico e irlandês conhecidas como «Acordos de Sexta-feira
Santa». O mesmo aconteceu, ainda que de mais tépida maneira,
porque a abstenção foi de 50% na República da Irlanda. Foi a
primeira vez que se realizou um acto democrático simultâneo nas
«duas Irlandas» desde que, em Dezembro de 1921, se realizou a
partilha do país através de um célebre e controverso tratado
que Michael Collins assinou em nome do povo irlandês.
Esta partilha deu lugar ao desenvolvimento de profundas contradições. Assim, de um lado ficou o Estado livre (futura República da Irlanda) católico, sequioso de liberdade, rebelde, em luta aberta e constante contra a potência imperial que a esmagara e reduzira todo o projecto nacional; do outro, os seis condados do Ulster, de vasta maioria protestante, de profundo espírito colonizador e de sujeição total ao imperialismo e à Grã-Bretanha. A trajectória da Irlanda, apesar ou por razão do tratado referido, continuou a ser de uma enorme instabilidade porque o país é só um e todos aqueles que o amam não desejam vê-lo partido em dois. Mas os protestantes e orangistas do Ulster, cujos privilégios se acentuaram com o tempo, adoptaram os interesses da Coroa Britânica e, no seu território tratavam os seus compatriotas republicanos e católicos como escravos. Esta terrível situação deu lugar ao conflito que ensanguentou o Ulster desde 1968 e que, agora, parece dar lugar a uma nova era de apaziguamento e de orientação para certas normas democráticas. O «apartheid» em plena Europa, essa grande vergonha britânica, vai acabar.
O acordo de Sexta-Feira Santa, que o partido republicano e católico «Sinn Fein» não assinou apesar de haver aconselhado os seus militantes e eleitores a votar «Sim», prevê, principalmente, a criação de uma assembleia de deputados de todo o Ulster e a formação de um governo local em que todos os partidos estejam representados. Isto significa que os «leaders» do Sinn Fein, Gerry Adams e Martin McGuiness, principalmente, farão parte desse governo. Logo que levadas à prática estas medidas de carácter institucional, o Gabinete britânico deixará de governar o Ulster, directamente, através de um secretário de Estado permanente. A Irlanda do Norte, apesar de continuar integrada no Reino Unido, ganhará uma certa autonomia. Londres, evidentemente, procurará travar o caudal de encargos que esta quase derradeira colónia do Império perdido representa. Encorajará Dublin, Belfast e a Europa a encontrarem medidas económicas e financeiras para desenvolvimento do Ulster.
Ao mesmo tempo, surgirão algumas instituições a constituir entre a República da Irlanda (Dublin) e o «novo» Ulster (Belfast). Ocupar-se-ão de matérias que dizem respeito ao todo irlandês. Mas o verdadeiro papel dessas novas estruturas não se acha bem definido, ainda. O mesmo acontece quanto a um «British/Irish Council» (Conselho Anglo-Irlandês). Não existem dúvidas, porém, de que este conjunto de medidas, cuja concretização envolve o «Sinn Fein» e a República da Irlanda, desagradou a uma considerável proporção de protestantes fanáticos e rancorosos cuja visão das coisas não ultrapassa aquilo que sempre pretenderam: a integração total e definitiva do Ulster no Reino Unido. Também alguns sectores republicanos e patriotas consideram que os acordos agora tão poderosamente aceites em todo o país estão longe de corresponder ao ideal supremo, a união de toda a Irlanda num regime republicano, laico e anti-imperialista. Há quem diga que a presença britânica no Ulster ficou assegurada por mais 75 anos pelo menos.
Momentos dramáticos
As negociações
conducentes ao já célebre Acordo de Sexta-feira Santa foram
difíceis. Em dados momentos, foram dramáticas. Grupos
dissidentes do IRA e dos paramilitares unionistas protestantes
recomeçaram campanhas de assassínios e bombardeamentos que
espalharam ansiedade e dúvidas quanto ao desenrolar de todo o
processo. A certa altura, o partido «Sinn Fein» viu-se afastado
da mesa das negociações devido a ter-se concluído que o IRA
tinha participado em certos ataques terroristas. Mas o IRA, como
verificamos na sua declaração que anexamos a este trabalho,
apoiava e apoia as negociações de paz e está inteiramente
preparado para respeitar a trégua por si próprio declarada.
Evidentemente, grupos de provocadores agitados pelos meios
protestantes e fascistas que não querem ver os católicos e
republicanos participarem no processo e que odeiam profundamente
a República da Irlanda são, em nossa opinião, os verdadeiros
responsáveis por esse novo terrorismo cujo objectivo era
paralisar as negociações. O assassínio do notório fanático
unionista e orangista Billy Wright em plena prisão do Maze,
atribuído ao INLA (Irish National Liberation Army), não pode
ter sido praticado por quem tivesse levado a peito o êxito das
novas iniciativas. A história do conflito irlandês está
repleta, infelizmente, de actos bárbaros e de sangue feito
correr por exércitos secretos e terroristas ao serviço
constante do mesmo patrão o imperialismo e o colonialismo
britânicos. Quem matou e mandou matar Billy Wright tinha de
estar ligado aos interesses dos defensores da ordem antiga, da
opressão da minoria e dos privilégios dos unionistas mais
reaccionários.
Mas o processo, pacientemente conduzido pela ministra britânica
da Irlanda do Norte, Mo Mowlam, prosseguiu e acabou por
concluir-se nas condições que atrás se referiram. Como
resultado, surgiram outras medidas a libertação, sob
licença, de alguns patriotas que se encontravam encerrados há
anos nas prisões da Grã-Bretanha e da República da Irlanda e o
projecto de reorganização da RUC (Royal Ulster Constabulary), a
notória polícia do Ulster cuja atitude para com a população
católica e republicana está desde há muito marcada pelo facto
de que os seus quadros são formados por gente recrutada nos
meios protestantes, orangistas, unionistas e inimigos da
República da Irlanda. Todavia, como todas as medalhas têm duas
faces, deu-se, igualmente, a libertação condicional de
assassinos e terroristas que o povo da Irlanda do Norte,
independentemente das suas convicções políticas e religiosas,
considera como personalidades indesejáveis. Está nesta
categoria o caso de Michael Stone, um nojento pistoleiro que
assassinou diversas pessoas e feriu muitas outras durante um
funeral patriótico. Saiu da prisão revelando o mais profundo
receio do Mundo mas gritando que, sim senhores, também ele apoia
os acordos de Sexta-Feira Santa.
Finalmente,
a histórica decisão
Os resultados do
referendo foram claros e concludentes. Cerca de 677 000
pessoas do Ulster votaram no «Sim» garantindo 71,12 por cento
da totalidade dos votos. O «Não» dos orangistas, unionistas
fanáticos e protestantes de inspiração totalitária e fascista
não ultrapassou os 28,88 por cento dos sufrágios contados, ou
seja, 274 879 votos. Perante estes números, Gerry Adams, o
«leader» principal do partido «Sinn Fein», declarou: «A
Irlanda do Norte votou por uma nova esperança e pelo futuro.
Vemo-nos, agora, face a um novo recomeçar e estamos certos de
que, desta vez, o final do processo será satisfatório. Na nossa
campanha para que a Irlanda seja uma só, encontraremos
obstáculos e dificuldades. Mas os unionistas terão de enfrentar
uma nova realidade. A sua lealdade para com o governo britânico
só pode trazer-lhe problemas. Quanto a mim, não sinto lealdade
relativamente a um país estrangeiro. O meu país é a Irlanda.»
As eleições gerais para deputados à nova assembleia que
elegerá um novo executivo e receberá da Câmara dos Comuns
alguns poderes terão lugar no dia 25 do próximo mês de Junho.
Espera-se que venha a ser presidido por David Trimble, dirigente
principal do Partido Democrático do Ulster (protestante e
unionista) que esteve na campanha pelo «Sim» desde a primeira
hora e que se desviou, oportunamente, da política negativa e
estagnante defendida pelo fanático e odioso reverendo Ian
Paisley. Como se disse, o «Sinn Fein» estará representado
nesse executivo. Então, uma nova era será iniciada e nela as
novas gerações terão uma palavra importante a dizer.