Os incêndios da Amazónia
na grande crise do Brasil

Por Miguel Urbano Rodrigues


A concentração de riquezas naturais na Amazónia é fabulosa. Foi, portanto, natural a emoção suscitada pelos incêndios que este ano devastaram, no Estado de Roraima, no Norte, uma área de dezenas de milhares de quilómetros quadrados no Brasil, onde quase tudo tem a dimensão do colossal.

A causa principal dos fogos foi a seca. Os incêndios na região são comuns. Mas em épocas normais, as chuvas, quase diárias em grande parte do ano, logo os apagam. Entretanto, uma seca excepcional provocada pelas anomalias de El Niño criou uma situação diferente. Os incêndios puderam desenvolver-se durante dois meses. Somente depois chegaram as chuvas que os apagaram.
Quando as chamas se aproximaram da reserva dos Yanomanis - uma tribo cuja existência só foi conhecida há poucas décadas -, os pajés daqueles índios promoveram velhas cerimónias rituais implorando que a agua caísse do céu. Repetindo ritos milenários, uma comunidade primitiva invocou os deuses para corrigir males da natureza. Por coincidência, choveu logo a seguir, o que não favoreceu na Região a imagem do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Lamentavelmente, o governo federal mostrou ser incapaz de combater o fogo recorrendo a tecnologias modernas.
A área florestal destruída foi relativamente pequena. Os incêndios devastaram sobretudo os cerrados (correspondentes às savanas africanas) da periferia das grandes matas e os lavrados, terras já cultivadas.
Por falta de recursos, os camponeses recorrem às queimadas para limpar as parcelas que pretendem cultivar. Tradicionalmente, as chuvas apagam esses fogos. Este ano, porém, a grande seca alterou tudo. O rio Branco, cuja largura média em Roraima costuma ser de l400 metros, estava reduzido a 200 metros; muitos dos seus afluentes secaram pela primeira vez nos últimos séculos.
O governo de FHC comportou-se passivamente. Fez demagogia e acumulou erros. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais não soube iniciar o combate aos incêndios, subestimou os efeitos de El Niño e demonstrou falta de conhecimentos para combater o fogo em florestas tropicais. As autoridades locais de Roraima, corruptas, agiram com cinismo. O governador do Estado obteve dinheiro de Brasília, mas utilizou-o sobretudo em pagamentos a apaniguados. Político primário, chegou ao extremo de afirmar na televisão que os agricultores deveriam estar contentes porque o fogo lhes preparou as terras para as sementeiras...
Numa entrevista à Revista "Princípios", o Prof. Aziz Ab Saber, da Universidade de São Paulo, um dos mais eminentes geógrafos da América Latina, adverte que os grandes incêndios de Roraima terão consequências graves para a estrutura agrária regional. Os preços das terras dos colonos e assentados já principiaram a cair. Os pequenos produtores, desanimados, tendem a vender as suas parcelas por qualquer preço. Os grandes proprietários - informa - vêm com dinheiro e aproveitam-se da gravidade da situação, gerando concentração fundiária por compra de propriedades.
Milhares de camponeses estão a cair na miséria.
No tocante ao Ambiente, é difícil por ora avaliar as consequências da tragédia de Roraima. Nas áreas de cerrado não há, porém, risco de desertificação; com as chuvas, a cobertura vegetal reconstitui-se ali rapidamente. Mas a poluição atmosférica provocada pelo fogo assumiu proporções assustadoras. A ineficácia no combate ao incêndio permitiu que se formasse uma massa de fumo gigantesca com uma espessura média superior a l500 metros. Durante semanas, os aviões comerciais tiveram inclusive de alterar as rotas para evitar o perigo vindo da poluição.


A biopirataria na Amazónia

Enquanto Roraima ardia, o Congresso debatia um tema de enorme importância ignorado pela comunicação social portuguesa: a biopirataria na Amazónia.
O assunto mobiliza hoje amplos sectores da sociedade brasileira, sobretudo as populações dos estados amazónicos.
A consciência da gravidade do saque de recursos naturais insubstituíveis levou a Câmara dos Deputados a criar, em Agosto de l997, a chamada Comissão Externa para apurar Denúncias de Exploração de Comercializacão Ilegal de Plantas e Material genético na Amazónia, presidida pela deputada comunista Socorro Gomes, do Partido Comunista do Brasil. Essa Comissão, popularmente conhecida como a da Biopirataria, elaborou um relatório cujas conclusões são alarmantes.
No findar do milénio, quando a indústria farmacêutica mundial depende cada vez mais da biodiversidade, o assalto dos grandes laboratórios transnacionais às riquezas da grande mata amazónica assume facetas criminosas.
As florestas tropicais ocupam hoje apenas 6% da área terrestre, mas é nelas que se concentra metade das espécies animais e vegetais do planeta. Ora ao Brasil cabe a maior parte dessas grandes florestas húmidas cuja superfície diminui em ritmo galopante.
Segundo o Prof. Paulo Kageyama, da Universidade de S. Paulo, num só hectare da floresta amazónica existem em média 500 espécies vegetais diferentes e uns 50 000 animais e microrganismos. Essa riqueza é ampliada por outro factor que a potencializa: a existência de populações nativas que acumularam um conhecimento profundo dessas espécies, desenvolvendo práticas tradicionais de utilização das mesmas com fins medicinais. É o caso das tribos de índios da floresta amazónica.

Da Amazónia saem ilegalmente uns 20 000 extractos de plantas raras por ano para laboratórios estrangeiros. É um saque permanente, colossal, do qual o Governo de FHC se torna cúmplice ao fechar os olhos.
Os representantes das transnacionais actuam no país como se estivessem na sua própria empresa: a biopirataria inclui colecta de sangue das comunidades indígenas e recolha de besouros e borboletas exóticos, registo de patentes de produtos elaborados com a informação adquirida das comunidades de índios amazónicos, etc.
O regabofe prossegue. No grande baile de máscaras neoliberal, a indústria química veste-se de verde. A fim de ajudar a natureza, os grandes laboratórios inovam no campo da biotecnologia para tornarem certas plantas mais resistentes. Estranhamente, não criam plantas capazes de resistir a pragas, sem ajuda química. Produzem apenas plantas resistentes aos pesticidas e herbicidas que os mesmos laboratórios transnacionais lançam no mercado.
Chico Mendes, o sindicalista brasileiro assassinado por latifundiários, morreu em l988 na Amazónia por acreditar que a militância ecológica era inseparável da luta social. Conforme recorda o escritor uruguaio Eduardo Galeano, Chico acreditava que a floresta amazónica não será salva enquanto não se levar adiante a Reforma Agrária no Brasil. Sem Reforma Agrária, os camponeses expulsos pelo latifúndio continuarão a ser pontas-de-lança da expansão pela selva do próprio latifúndio; um exército de colonos esfomeados arrasa bosques e extermina os índios por conta do punhado de empresários que abocanha a terra conquistada e por conquistar.
As chamas dos incêndios apocalípticos de Roraima vieram iluminar melhor aspectos pouco conhecidos da crise global da nação brasileira.


«Avante!» Nº 1278 - 28.Maio.98