Debates
viciados
Há uma notória propensão nacional para os
debates viciados. Num ano em que se perspectivam três
referendos, as matérias em que vão incidir são especialmente
visadas.
A mistificação foi desde sempre, entre nós, uma arte cultivada
pelas classes dominantes. Nos últimos tempos, o poder - ontem
com o PSD e hoje com o PS - tem-se especializado no embuste
propagandístico.
A oposição de direita está a demostrar, no preciso momento em
que cozinha uma nova aliança com vista aos actos eleitorais
próximo ano, que para ela não há limites no recurso à
demagogia, à promessa hipócrita e à propaganda falseada.
Nas questões nacionais que estão em discussão, desde as que
são objecto de referendo até à reforma da segurança social,
passando pela nova ofensiva contra os direitos dos trabalhadores,
as questões do ensino, da saúde e da fiscalidade, o que a
comunicação social, em geral, trás a público, não são as
verdadeiras opções, mas opções que os poderosos querem fazer
crer que são as verdadeiras.
A própria Igreja Católica está a contribuir e de forma
especialmente chocante para a viciação do debate sobre a
interrupção voluntária da gravidez.
Começou por se opor, com alguma coerência, ao referendo sobre o
aborto; anunciou, depois, através da Conferência Episcopal que
não faria campanha no referendo e não requereu tempos de
antena; declarou, ainda, pela voz do novo Patriarca de Lisboa, D.
José Policarpo, em entrevista à RTP, que a questão do aborto
não é uma questão de religião.
Na realidade, o que aconteceu, é que mesmo antes da campanha do
referendo se iniciar já a Igreja lançava a sua campanha
«semana pela vida», que é a verdadeira arrancada da campanha
pelo não. Nesta frenética campanha logo se ouviu da parte de
alguns padres a grosseira deturpação do que está em causa no
referendo, a condenação de qualquer espécie de aborto e o
agitar do argumento da autoridade divina e o apelo à vontade de
Deus, com uma velha intolerância que lembra a Inquisição.
Saliente-se, além disso, que , ao contrário do prometido pelos
bispos, a campanha da Igreja não se recolhe nas paredes do
templo, não se limita ao altar, ao púlpito, ao confessionário,
à sacristia, mas faz-se ouvir por todo o país , até usando
abusivamente os tempos de antena que a comunicação social
pública lhe faculta para o múnus religioso.
E a Igreja faz tudo isto, sustentando que não participa na
campanha, assim foge a constituir-se como parte do debate e
pretende furtar-se antecipadamente ao resultado do referendo...
Embora com outras características, o debate sobre a
regionalização é objecto das maiores manobras de
desinformação, deturpação e viciação.
Não se nega, evidentemente, o respeito devido a opiniões de
reserva e oposição à reforma regionalizadora, mas o mais
característico nos argumentos dos centralistas seus acérrimos
adversários é a falsificação do projecto de Regiões
Administrativas delineado na Constituição e na legislação
aprovada na Assembleia da República.
Constituem uma ridícula diabolização sem consistência as
acusações de que as Regiões Administrativas põem em causa a
unidade nacional, esquartejam o país e exasperam os
regionalismos. Também não colhem outras acusações, como
alegadas ameaças ao poder local, agravamento do despesismo
público, favorecimento de uma nova burocracia.
A verdade, é que as Regiões Administrativas são apenas mais
uma autarquia que não tem poderes para dividir, mas que visando
democratizar, descentralizar, incrementar o desenvolvimento
regional e a reforma administrativa pode criar uma nova dinâmica
de unidade no país, proporcionar um quadro institucional para
dirimir as pressões regionalistas (que hoje operam por caminhos
ínvios), eliminar focos de ingerência nos municípios e
instâncias de poder burocrático e não democrático como são
as CCRs.
Agora Mário Soares, que se assumiu como frontal opositor da
regionalização, descobriu, na longa entrevista que concedeu ao
«Diário de Notícias», que o maior perigo que ela representa
é originar orgãos regionais legitimados por eleições, o que
lhes dá uma força especial para enfrentar o poder dos governos.
Custa ver o antigo Presidente da República pôr assim em causa o
primado do sufrágio e o mérito da electividade, mas percebe-se
que o que ele receia é que precisamente o sufrágio possa
produzir maiorias regionais, de esquerda naturalmente, que fujam
ao stato quo, do bloco central. Não é só esta, é claro, a
causa profunda da exacerbada oposição à regionalização dos
meios conservadores do país e de outros que facilmente se
converteram ao credo centralista. Mas esta razão conta bastante
e até conta muito, de certeza, nas claudicações e
tergiversações do Governo e do PS em relação à
concretização do processo.
Entretanto, o país paga, como acaba de ser demonstrado na 4ª Assembleia da Organização Regional dos comunistas algarvios, onde a criação da Região Administrativa foi, mais uma vez, apontada como um passo indispensável e inadiável para o desenvolvimento do Algarve. Carlos Brito