Hipocrisias


A um mês do referendo sobre o aborto, a fina capa de verniz que esconde a intolerância dos sectores mais conservadores da sociedade já estalou. Desde comparar a lei da despenalização à «barbárie nazi», apresentando como a antecâmara de «fornos de extermínio de pessoas», como fez há dias o bispo de Viseu, a apontá-la como sendo «pior do que uma nova forma de holocausto», nas palavras do bispo de Bragança, já se lançou mão a quase todos os 'argumentos' numa campanha onde escasseia a serenidade e a lucidez e sobeja o primarismo, a hipocrisia e a crueldade.
Há padres que ameaçam deixar de fazer baptizados ou de prestar qualquer assistência aos seus paroquianos em caso de vitória do «sim»; há partidos - como o PP-Madeira - que instigam o Governo Regional a não aplicar a legislação caso o voto popular seja contrário às suas convicções; há páginas e páginas na Internet onde alegadas associações cívicas ou simples particulares estabelecem as mais mirabulantes comparações entre o aborto, a mafia, a pedofilia ou a escravatura, convenientemente ilustradas com fotografias a cores de fetos abortados, e muitas ligações a endereços estrangeiros onde é possível satisfazer a curiosidade mórbida e o gosto pelo sangue que se diz querer evitar.
E tudo isto se faz em nome da vida, da dignidade, da pessoa humana, da moral, da ética e dos bons costumes.
E tudo isto é feito por quem se arroga o direito de pretender impor aos outros, e às mulheres em particular, os seus próprios credos, e lava depois as mãos como Pilatos de quanto respeita à concretização das condições indispensáveis à vida e à dignidade humanas.
A estes pretensos defensores da vida nunca preocupou o facto de as mulheres estarem sujeitas às condicionantes de uma sociedade essencialmente machista, que não só as responsabiliza pela maternidade, pela família, como ainda por cima as penaliza duplamente quando pretendem realizar-se como seres humanos. Esposas, mães, força de trabalho, objecto de prazer, discriminadas a todos os níveis da sociedade (apesar das belas leis sobre igualdade por cujo respeito não se vela), as mulheres são ainda quem tem que responder pela gravidez não desejada, quem arrisca a vida no aborto clandestino, quem carrega o ónus de criminosa face a uma legislação que iliba à partida os homens de qualquer responsabilidade. Não há memória de um único pai ter chegado à barra do tribunal para responder pelo aborto do filho que se decidiu não ter.
Criminosas, as mulheres que abortam? Como pode alguém afirmar tal coisa quando ela é a primeira a ser violentada - se o não foi no momento da conceçpão - quando confrontada com a necessidade de decidir o que fazer com o filho que não tem condições de ter? Quanto custa uma decisão destas, dolorosa, que a esmagadora maioria das vezes as mulheres têm de tomar sozinhas?
A hipocrisia dos que defendem a penalização das mulheres que abortam é tanto maior quanto se sabe que a lei a referendar não obriga ninguém a abortar. Em consciência, se é disso que se trata, têm tão só que viver de acordo com as suas convicções, deixando quem não tem meios para discretamente se deslocar ao estrangeiro a 'resolver o assunto' optar igualmente pelo que, em consciência, considera ser melhor. Ou menos mau.
Sem hipocrisias, e à luz da moral que dizem defender, os que falam em nome da vida deveriam abster-se de lançar a primeira pedra condenando quem, por não ter outra escolha, é forçado a escolher o mais difícil. Seria mais generoso, menos primitivo, e sobretudo mais humano. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1278 - 28.Maio.98