TVisto
À espera de Mandela
Por Correia da Fonseca
Sentei-me diante do televisor, com alguma
antecedência em relação à hora anunciada, à espera de que
chegasse a biografia de Nelson Mandela em «Vidas do Século»,
na TV2. Para lá da meia-noite, naturalmente. Demorou mais do que
era esperável, agora que a RTP parece caprichar um pouco mais no
cumprimento dos horários. Quando chegou, talvez porque vinha
atrasada, ninguém perdeu tempo em avisar o telespectador de que
iria ver apenas metade do telefilme que Jo Menell foi fazer à
África do Sul: nem uma locuçãozinha de continuidade nem uma
breve legenda para prevenir-nos.
Talvez na RTP tenham pensado que àquela hora e tratando-se da
vida de Mandela, quer dizer, não sendo investigação sobre
casos de pedofilia, nem reportagem acerca de criancinhas
esfomeadas, nem inventário televisual de violências sexuais,
não haveria sequer telespectadores à espera. Ou que,
havendo-os, seriam apenas aquela escassa meia dúzia de cidadãos
jurássicos que ainda se interessam por lutas pela liberdade, por
difíceis itinerários para sociedades mais justas. Gentes,
enfim, que interessam pouco. Pelo que, no que respeita a metades
de telefilmes, bastava que aprendessem por si próprios no fim da
emissão.
Quanto ao telefirme, ou melhor, à metade dele que por agora nos
foi dado ver, pareceu-me globalmente simpática mas incomodamente
discreta quanto aos aspectos mais tenebrosos e desumanos da
ditadura racista. Talvez o defeito seja meu, quem sabe? Talvez
também eu já esteja tocado pela avidez de televiolências que
tem sido semeada às mãos cheias nas expectativas do público.
Talvez a segunda parte do telefilme, a ver no próximo domingo,
venha remediar essa omissão. De resto, esta primeira metade
terminava com imagens do histórico massacre de Sharpeville em
Março de 60. Mas duvido de que a face hedionda de um regime se
esgote no facto obviamente cobarde de a polícia ou o exército
dispararem sobre uma multidão pacífica.
Bem se sabe que uma avaliação do telefilme de Menell só pode
ser feita depois de o vermos integralmente. Nesse sentido,
aliás, fica esta nota, porventura capaz de mobilizar para o
visionamento a curiosidade de alguns telespectadores. Entretanto,
do que já foi transmitido é preciso referir alguns momentos
notáveis: as imagens iniciais a testemunharem o enquadramento
tristonho, opressivo, da prisão onde Mandela sobreviveu durante
mais de duas décadas; a revelação de que o nome de Nelson lhe
foi imposto por um professor decerto anglocentrista que
desaprovou o nome africano do garoto que lhe foi entregue; a
genuidade desataviada da mãe de Mandela.
A incomodidade
Volto, porém, um
poucochinho atrás. Sentei-me eu diante do televisor, apenas para
esperar a chegada de Mandela, quando me dei conta de estar a ser
transmitida uma reportagem acerca do Ballet Kirov, que esteve
sediado em Leninegrado e agora, sem mudar de sítio, está em S.
Petersburgo. Era, claramente, um telefilme que não morria de
saudades pela ex-URSS, bem pelo contrário, mas deparava a
situação incómoda de ter de reconhecer a superlativa qualidade
do Bailado na União Soviética. Qualidade que não caíra do
céu aos trambolhões nem subira do inferno entre labaredas:
diversos e insuspeitos deponentes informavam que durante a
abominável ditadura comunista não faltaram ao Kirov nem as
necessárias coberturas financeiras nem a variedade de outros
apoios, ao passo que hoje, em regime de mercado, o futuro da
companhia se revela inçado de dificuldades.
Para os autores da reportagem era muiito desagradável: dir-se-ia
que os comunistas, esses selvagens, apreciavam e protegiam a arte
em geral e o Bailado em particular, o que podia vir prejudicar a
imagem de demonização e pauperismo que a informação
democrática dá do regime soviético. Porém, o verdadeiro
jornalismo sobre a ex-URSS é o jornalismo que não desmobiliza
perante os factos e tem sempre engatilhada uma explicação
conveniente. Neste caso, a solução foi sustentar que o apreço
soviético pelo Ballet decorria de ser um espectáculo que narra
«contos de fadas», desligados da realidade. Assim se converte a
opção pela promoção cultural de um povo em indício de
obscurantismo prosseguido por vias transversais, maquiavelismo
político, crime contra a cultura e talvez contra a humanidade.
Foi assim que, enquanto esperava por Mandela, quase me vi
obrigado a reflectir sobre o estranho cadáver do comunismo
soviético que ainda atrai tantos e aparentemente tão inúteis
golpes. Como se um fantasma percorresse a Europa, o mundo: o de
uma sua assustadora ressurreição.