EDITORIAL

Ser ou Ter sido, eis a questão


Ainda não há muito tempo, o PCP estava completamente isolado na consideração que fazia de que, entre a política praticada pelo Governo do PS e aquela que durante uma década, foi aplicada pelos governos do PSD, não havia diferenças essenciais. Tratava-se, diziam os habituais observadores, da habitual cassette... Hoje essa consideração do PCP corresponde a uma opinião generalizada, incontestável e incontestada. Há mesmo quem considere que a palavra «essenciais» é dispensável, ou seja que, pura e simplesmente, não há diferenças; ou até que, se as há, elas são cada vez mais desfavoráveis para o governo do engenheiro Guterres.

Mesmo a tão apregoada postura de «diálogo» e «tolerância» - imagem de marca com a qual o actual executivo, durante algum tempo, logrou convencer muitos cidadãos mais ou menos distraídos de que algo de significativo o distinguia dos governos anteriores - está hoje em queda livre de descrédito. Os aplausos dos chefes dos grandes grupos económicos e financeiros e os resultados das chamadas sondagens de opinião entusiasmaram de tal modo os governantes do PS que eles passaram a agir, a comportar-se como se a maioria absoluta dos seus sonhos fosse uma inevitabilidade. E, naturalmente, sem qualquer esforço visível, vêm assumindo de forma modelar, a arrogância e a insolência cavaquistas de má memória; o estado-rosa exibe já, ostensivamente, a sua condição de irmão gémeo do estado-laranja. Se assim é apenas com o cheiro da maioria absoluta imagine-se o que seria se a obtivessem.

No que toca à política europeia, o actual Governo tem sabido imitar na perfeição a postura de aluno bem comportado que tantos elogios rendeu a Cavaco Silva. E é com igual «orgulho nacional» que insiste, obsessivamente, em projectar para a Europa a imagem de um Portugal à frente de todos os pelotões da frente, moderno, desenvolvido, paradisíaco (aqui, é justo reconhecê-lo, há uma diferença: o oásis de Cavaco deu lugar ao paraíso de Guterres). E tão cor-de- rosa são os tons difundidos, tamanhas são as bem aventuranças propaladas que Portugal corre sérios riscos de ver fechada a torneira do Fundo de Coesão a partir do ano 2 000: quem tanto progrediu e tão altos índices de desenvolvimento atingiu, não só não precisa de mais ajudas como estará, até, porventura, em condições de ajudar os mais necessitados, terão pensado com os seus botões os que mandam na torneira. Assim como quem diz que, nesta rede de caminhos armadilhados, quem se mete por atalhos mete a vida em trabalhos - coisa que seria de somenos se as consequências da opção penalizassem apenas quem optou e não recaíssem fundamentalmente sobre o povo e o país.

Quanto à política nacional a situação é idêntica: na área laboral, o Governo do PS prossegue entusiasticamente os objectivos dos governos do PSD - no momento actual através da tentativa de alterar radicalmente, para pior, importantes leis do trabalho e o sistema de Segurança Social - embora, reconheça-se também aqui, num estilo diferente: aos cavacais pacotes laborais por atacado, Guterres prefere proceder à alteração da legislação por doses. Doses perfidamente revestidas de ocasionais medidas de limitado conteúdo positivo e com as quais procura esconder o conteúdo, altamente gravoso para os trabalhadores, das alterações em causa - método de longas e velhas barbas e que exibe exemplarmente o conteúdo «moderno», «solidário» e «transparente» da prática do Governo do PS, na sua concreta aplicação da política de direita.

No que respeita às privatizações, o Primeiro Ministro não se cansa de expressar e difundir o seu orgulho, a sua satisfação pelo facto de o governo a que preside ter privatizado mais em dois anos do que o governo do PSD em dez. Com a agravante vantagem de, segundo tudo indica, não ficar a dever nada ao seu antecessor em matéria de favoritismos concedidos a determinados grandes grupos económicos («negociatas» lhes chama Belmiro de Azevedo, ele lá saberá porquê). E o argumento de que também «eles» tiverem os seus «favoritos», apenas confirma os favoritismos actuais.

Também no que toca aos super-jobs para os super-boys, os dois partidos pedem meças um ao outro. E não vale atacarem-se mutuamente, cada um fingindo-se inocente das culpas que atira ao outro. «É bom lembrar que esta promiscuidade já vem de longe e em crescendo», como salientou Carlos Carvalhas na intervenção produzida na 3ª Assembleia do Sector Intelectual da ORL. Aliás, o mais provável é que não haja diferenças significativas entre os números de ex-membros dos Governos do PS e do PSD ocupando vários e chorudos cargos. Precisamente porque o que o PS - hoje no Governo - faz, é fotocópia do que o PSD fez quando lá esteve. Precisamente porque ter estado e estar é a mesma face da mesmíssima moeda. Rivais são-no eles apenas no objectivo de bem aplicar a política de direita comum aos dois. Ser governo significa para o PS o mesmo que para o PSD significa ter sido governo: essa a questão.


«Avante!» Nº 1279 - 4.Junho.98