Com a presença de Carlos Carvalhas
SIM à despenalização do aborto
afirmado em comício no Barreiro


...E de súbito a poesia virou comício, a palavra do poeta pairou sobre a multidão na voz da oradora, «Luísa sobe, / sobe que sobe / sobe a calçada», a emoção foi tomando conta da sala mergulhada em penumbra até que, no verso final - «Luísa sobe, / sobe a calçada, / sobe que sobe / e não dá por nada...» -, o salão dos Penicheiros, no Barreiro, explodiu numa estrondosa ovação a Odete Santos, a deputada que abriu, com a declamação do conhecido poema «Calçada de Carriche» de António Gedeão, o comício na noite da passada sexta-feira dedicado à campanha do PCP a favor do «Sim» no próximo Referendo sobre a despenalização do aborto.
A exploração da mulher genialmente fixada nos versos do poeta e brilhantemente recitada por Odete Santos, foi o ponto de partida para um comício onde a despenalização foi inequivocamente defendida. Carlos Carvalhas, ao encerrar os discursos, fez o corolário de uma sessão particularmente empolgada e emotiva na defesa dos direitos da mulher e contra a hipocrisia dos vendilhões da moral a retalho.


«Uma extrema violência, nesta campanha em marcha para o referendo do dia 28 de Junho, se abate sobre todas as mulheres portuguesas, cidadãs menores, privadas do direito à saúde reprodutiva, do direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade, do direito à liberdade de consciência, do direito à intimidade da sua vida privada, do direito à sexualidade, do direito à liberdade», afirmou Odete Santos após ter iniciado o comício com uma notável declamação do poema de António Gedeão «Calçada de Carriche», que emocionou o pavilhão do Penicheiros. E prosseguiu, verberando os adversários da despenalização:

«É de dedo em riste contra as mulheres portuguesas que blasfemam os que desconfiam das mulheres. Os que as querem amarradas à ameaça de uma lei de que resultam apenas mortes e doenças graves de mulheres. É de dedo em riste que os defensores do não à despenalização e legalização do aborto exigem que as mulheres sejam consideradas criminosas, quando sabem que toda a sociedade, considerando o aborto um mal, como de resto o consideram as mulheres, quando sabem que toda a sociedade compreende a angústia daquelas que, nestes difíceis tempos, não podendo ter um filho, tomam a decisão difícil, mas moral, de abortar».

E acusou: «Esses, que de dedo em riste culpabilizam as mulheres, não defendem a vida. A vida está em causa todos os dias, nas famílias que já não sabem o que é a estabilidade. Porque o emprego é precário; porque não há emprego; porque a droga espreita mesmo pela barraca de um bairro degradado; porque se perdeu o emprego quando o patrão percebeu a gravidez escondida até mais não se poder».

«Mas desta vida», frisou Odete Santos, «nunca curaram os que agora tanto falam de vida. Os que se bastam com a lei que não se cumpre, para terem um sono sossegado sobre mortes e doenças de mulheres. Mas hipocrisia não rima com Democracia. E só a Liberdade rima com Dignidade, que há-de ter também nome de Mulher», acrescentou a deputada comunista por entre grande ovação do público, concluindo: «Aqui estamos dizendo frontalmente que votaremos Sim. Que estamos a correr o país de Norte a Sul transportando as palavras tolerantes de quem sempre se recusou a viver paredes meias com os dramas do aborto clandestino».

Igualmente vibrante foi o discurso de Cláudia Antunes, falando em nome da JCP e recordando factos terríveis: «É do domínio público que cerca de 190 mil mulheres por ano abortam em Portugal e 30% dos abortos clandestinos têm como vítimas raparigas com menos de 15 anos, levando a que o aborto seja a principal causa de morte materna entre adolescentes». Mas os números brutais não ficam por aqui, pois «11 mil mulheres por ano recorrem aos hospitais, após complicações de aborto realizado em más condições, não esquecendo ainda as 89 mulheres que se sabe terem perdido a vida entre 1984 e 1993 após a prática de aborto clandestino». A JCP, «indo ao encontro daquilo que é o sentimento da esmagadora maioria da juventude, fará campanha pelo Sim de forma activa e participada», concluiu Cláudia Antunes, no meio das aplausos do público.

 

Intervenção de Carlos Carvalhas

O secretário-geral do PCP, Carlos Carvalhas, encerrou as intervenções do comício num discurso igualmente vibrante, onde desmascarou, sem tergiversações, a hipocrisia dos argumentos que se opõem à despenalização. Apresentamos alguns extractos da sua intervenção, entusiasticamente aplaudida pela assistência que enchia o grande salão dos Penicheiros.

«(...) O que se discute e vota neste referendo é se queremos ou não acabar com a actual pena de prisão até três anos para as mulheres que recorram ao aborto, isto é, que passe a ser possível, por decisão responsável da mulher, realizar o aborto até às 10 semanas em condições de assistência médica, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado (...)

«Foi por iniciativa do PCP que em 1984 foram aprovadas leis sobre o planeamento familiar, educação sexual e protecção da maternidade, que precisam de ser melhoradas e sobretudo melhor cumpridas e respeitadas.

«Entre 1984 e 1996 - em 12 anos - não se discutiu nenhuma lei da despenalização, continuaram os abortos clandestinos e isso não deu origem a nenhuma actividade ou indignação por parte das pessoas e movimentos que agora fazem a campanha pelo Não. Só acordam para a defesa do "direito à vida" quando surgem projectos para despenalizar. Tirando essas alturas, não se incomodam nem com o aborto, nem com a vida dos fetos e das mulheres desde que o aborto continue clandestino.

«O Não no referendo tem como consequência o acordo com a manutenção das penas de prisão, com a continuação do aborto clandestino e com o negócio que alimenta.

«Mas os que se dizem defensores da vida não se mostram muito preocupados com os baixos salários e reformas, não se preocupam com o facto de as mulheres constituírem 57% dos desempregados há mais de um ano, 64,5% dos jovens com curso médio e superior à procura de emprego.

«Dizem ser pelo direito à vida mas não se preocupam com o facto de as candidatas a emprego serem sujeitas a perguntas sobre o seu estado civil, se pensam ter filhos, etc., etc.. Não se preocupam com as trabalhadoras que, por serem mães, são discriminadas no salário e nos prémios de produtividade, não se preocupam com a grave carência em infra-estruturas de apoio à família, com a degradação do poder de compra e da qualidade de vida, com a flexibilização dos horários de trabalho, a falta de transportes rápidos e a desregulamentação das relações laborais. Basta de hipocrisia! (...)».


«Avante!» Nº 1279 - 4.Junho.98