TRIBUNA

Ainda antes do referendo...

Por António Filipe


Quando começarem a ser emitidos os tempos de antena da campanha do referendo sobre a IVG, muita gente estranhará o insólito do mesmo tempo de antena poder servir para uns apelarem ao voto no Sim e outros apelarem ao voto no Não. E esse é apenas um dos efeitos visíveis de uma lei que não foi feita para ser justa e adequada, mas para servir conveniências conjunturais do PS e do PSD.

Dir-se-ía à primeira vista que, num momento em que todos nos devemos empenhar na campanha do referendo, por forma a que no próximo dia 28 o Sim à despenalização da IVG saia vencedor, criticar a lei orgânica do regime do referendo aprovada quase há três meses na Assembleia da República seria chover no molhado. A lei foi aprovada e promulgada, foi marcado um primeiro referendo, e o processo está em andamento, não havendo tempo a perder na batalha de esclarecimento que é necessário travar, com serenidade mas com determinação, a favor do Sim. Sendo isto verdade, valerá a pena ainda assim chamar a atenção para alguns aspectos da lei que regula o regime do referendo, até para que se perceba a origem de alguns factos insólitos que não deixarão de ser visíveis na campanha e que podem até suscitar alguma confusão.
A lei orgânica do regime do referendo aprovada na Assembleia da República em Março último, com os votos do PS e do PSD, veio substituir uma lei sobre a mesma matéria que havia sido aprovada com enorme foguetório em 1991, na sequência da Revisão Constitucional de 1989, mas que nunca chegou a ser aplicada. Poderia ter servido para regular um referendo sobre a Ratificação do Tratado da União Europeia, se o PS e o PSD não se tivessem oposto à sua realização. Mas inviabilizada que foi essa justa reivindicação de muitos milhares de portugueses, a lei n.º 45/91 foi revogada sem ter tido a possibilidade de revelar os seus defeitos ou as suas virtudes.
Não se contesta a necessidade de alterar alguns aspectos da lei de 1991. Não apenas porque a Revisão Constitucional de 1997 veio impôr alterações nalguns aspectos, mas também porque havia todo o interesse em corrigir algumas disparidades entre o regime do processo eleitoral aí regulado e os demais processos eleitorais, por forma a não introduzir elementos de perturbação desnecessários e inconvenientes. Mesmo discordando de alterações decorrentes da Revisão Constitucional (como é o caso da sujeição a referendo da instituição em concreto das regiões administrativas), poderia reconhecer-se na nova lei do referendo o propósito de regular de forma justa e adequada os processos eleitorais referendários. Só que, da parte do PS e do PSD, esse propósito não existiu.


Um fato por medida

E assim, em vez de uma lei destinada a regular de forma geral e abstracta os problemas suscitados pelo instituto do referendo, a lei orgânica em vigor é um fato pronto-a-vestir, feito à medida das conveniências conjunturais do PS e do PSD, e destinado a resolver os problemas em que ambos os partidos se viram embrulhados face aos referendos que, em concreto, tinham - e têm - em vista.
Só isso explica que tenham sido consagradas na actual lei do referendo algumas soluções que, para além de violarem princípios constitucionais, ofendem o mais elementar bom senso. Vejamos alguns exemplos:

É evidente que na campanha eleitoral para referendo, a única forma de respeitar a igualdade de oportunidades de ambas as posições em confronto - e no referendo só pode haver duas posições em confronto - é repartir os meios específicos de campanha (tempos de antena, locais de afixação de propaganda, ou outros) de forma igualitária entre os defensores do Sim e os defensores do Não. Assim como é evidente que, sendo o objectivo único da campanha do referendo justificar e esclarecer uma opção entre as duas posições em confronto, os meios de campanha só possam ser disponibilizados e distribuídos aos Partidos e aos grupos de cidadãos que pretendam intervir na campanha tomando uma posição sobre a questão a submeter ao eleitorado. Tanto assim é, que nem a lei de 1991, nem a proposta de lei que o Governo apresentou já depois da Revisão Constitucional de 1997 punham em causa estes princípios.
Acontece porém que, decidido o referendo à IVG, logo o PS e o PSD trataram de se entender para ter "sol na eira e chuva no nabal". Isto é: Usar os meios específicos de campanha, apesar de não querer tomar posição sobre a questão submetida ao eleitorado. E assim, na campanha que se aproxima, não haverá uma distribuição igualitária de tempos de antena entre o Sim e o Não. Serão distribuídos pelos Partidos e pelos grupos de cidadãos que os pretendam utilizar, uns para apelar ao Sim, outros para apelar ao Não, e com o PS e o PSD a apelar ao Nim e ao São.
Mas não será este o único absurdo a marcar os tempos de antena da campanha que se aproxima. Muita gente poderá ficar sem perceber porque razão, sendo o PCP e o PEV Partidos legalmente constituídos, são obrigados a utilizar um tempo de antena atribuído conjuntamente a ambos. Por uma única razão: É que como o PS e o PSD pretenderam reservar para os Partidos com representação parlamentar a fatia mais substancial dos tempos de antena, trataram de cozinhar uma norma unicamente destinada a prejudicar o PCP e o PEV. Assim, pelo facto do PCP ter concorrido em coligação com o PEV nas últimas eleições legislativas, é obrigado a repartir com este Partido um único tempo de antena. Como bem se vê, o absurdo é total: Não só porque as coligações se extinguem com a realização das eleições, mas também porque ninguém pode garantir que dois partidos anteriormente coligados tenham a mesma posição relativamente à questão submetida a referendo.
É claro que uma norma destas não tem ponta de constitucionalidade, nem de lógica. Falou mais alto a vontade política de discriminar o PCP e o PEV.


Conveniências e hipocrisias

Sendo estes os absurdos mais visíveis na campanha que se avizinha, não são os únicos a marcar a recente lei do referendo. Outros aspectos, determinados por outras tantas conveniências, com os olhos postos noutros referendos, foram igualmente consagrados.
Assim, foi eliminada uma norma constante da lei de 1991 que exigia um espaço mínimo de três meses entre a realização de dois referendos. Eliminada, como é bom de ver, em nome do acordo entre o PS e o PSD que prevê a realização simultânea do referendo sobre as Regiões Administrativas e de um chamado referendo sobre qualquer coisa relacionada ao de leve com a União Europeia. Tal como foi consagrada uma norma, não prevista na Constituição, que condiciona o efeito vinculativo do referendo sobre a Regionalização à participação de mais de metade dos eleitores inscritos, levantando mais um obstáculo ao cumprimento desse imperativo constitucional.
Importa ainda anotar dois factos. O primeiro, para assinalar que, apesar de tanto o PS como o PSD se lamentarem frequentemente do excesso de despesismo eleitoral de que ambos dão exemplo, o limite de despesas estabelecido na lei do referendo para cada Partido ou grupo de cidadãos ronda a exorbitância de 800 mil contos.
O segundo, para registar que depois de terem sido lançados tantos foguetes a saudar - muito justamente - a admissão na Revisão Constitucional da iniciativa popular de referendo, o PS, o PSD e o PP aprovaram na lei a exigência de 75 mil assinaturas para que tal iniciativa possa ser desencadeada. Bastará então um número de assinaturas equivalente ao que permitiria a constituição de quinze partidos políticos para que os cidadãos possam tomar a iniciativa de pedir à Assembleia da República que delibere propôr ao Presidente da República a convocação de um referendo. Haverá maior hipocrisia?


«Avante!» Nº 1279 - 4.Junho.98