A TALHE DE FOICE

Basta?



Acabar com a «impunidade» de menores delinquentes e «educá-los para o direito» é pretensamente o objectivo do projecto de reforma do direito tutelar de menores recentemente apresentado pelo Ministério Público.

Pretensamente, também, o referido projecto encontra-se em fase de discussão pública, embora no início da semana os grupos parlamentares ainda não o tivessem recebido, o que é no mínimo insólito.

O que se sabe, através das declarações de alguns intervenientes no processo, suscita não só perplexidade como uma profunda preocupação. Segundo Rui Epifânio, da Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de Penas e Medidas, a cargo de quem esteve o projecto em causa, «temos um sistema demasiado protectivo, ultrapassado, um sistema positivista que, sob a capa de que toda a criança necessita de protecção, se abate sobre ela, esmagando-lhe a autonomia». Em abono da asserção invoca-se a burocracia do sistema, mas para que não restem dúvidas do que está em causa, Rui Epifânio acrescenta que «há ocasiões em que é preciso dizer ao menor:'Basta!'».

A perplexidade coloca-se de imediato com a apreciação ao sistema - «demasiado protectivo», «positivista»... - que, se é necessário mudar, é porque não serve.

Mas a preocupação, essa, surge com as medidas com que se pretende inovar: o menor passa a ser julgado em tribunal; as penas incluem a completa privação de liberdade (em «centros de educação») e castigos (medidas cautelares) em quarto disciplinar por um período de vários dias (a «solitária?»). Nos ditos centros, o menor poderá ainda ser sujeito a medidas preventivas e de vigilância, bem como a «medidas de contenção física pessoal» através da «utilização da força física para a imobilização do menor». Ou seja, levar pancada?

Como se isto fora pouco, há ainda a intenção de «separar as águas», que é como quem diz tratar de forma diversa os menores considerados «vítimas» e os menores classificados de «delinquentes», sendo que os primeiros são considerados «em risco» e os segundos «responsabilizados perante a justiça».

Ora é justamente neste ponto que a questão se complica. Que raio de sociedade é esta que pretendemos construir em que um menor delinquente deixa de ser encarado como um menor em risco?

Que responsabilização se pretende imputar a um menor - o projecto não se refere a idades, mas do que se está a falar é de menores de 12 e 13 anos - que envereda pela delinquência, quando a sociedade se desresponsabiliza da panóplia de motivos (afectivos, sociais, económicos, etc.) que podem estar na origem do comportamento desviante?

Que «educação para o direito» é esta que se propõe através da prisão, do isolamento, da utilização da força física?

Onde o acompanhamento médico, psicológico, afectivo para crianças, porque é de crianças que se trata, cujo comportamento se tornou desviante? Quem faz a história da família e dos dramas vividos pelo «menor delinquente»? Quem responsabiliza a família, quantas vezes a instigadora da delinquência? Como se ajuda a família?

O projecto não parece dar resposta a estas questões. E não basta certamente dizer «Basta!» a crianças cuja vida se limita tantas vezes à dura aprendizagem da sobrevivência na lei da selva em que nasceram.

Sobejam sem dúvida motivos de preocupação com o crescendo da delinquência juvenil. Mas não será erguendo muros que o problema poderá ser resolvido. Talvez tenha chegado a hora, se o problema está aberto à discussão pública, da sociedade dizer se questionar sobre o que está a fazer às suas próprias crianças. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1279 - 4.Junho.98