Desmancho, Aborto ou Interrupção Voluntária da Gravidez
Despenalizar, rejeitar hipocrisia



Inserido na grande campanha de esclarecimento sobre o referendo que no próximo dia 28 vai decidir o sim ou não à despenalização do aborto, o PCP realizou, no passado dia 8, no Hotel Continental, um encontro-debate.
Para além da presença de Carlos Carvalhas, secretário-geral do PCP, e de Odete Santos, deputada comunista na Assembleia da República, este encontro contou com a participação de Antonia Tomasini, dirigente do Forum delle Donne e do Partido da Refundação Comunista de Itália, de Dominique Benoit Frot, representante do Partido Comunista Francês no Colectivo Nacional dos Direitos das Mulheres de França, e do dr. Maia Costa, Procurador-geral Adjunto do Supremo Tribunal de Justiça e mandatário do Movimento Tolerância.


Uma assistência composta por dezenas de pessoas, entre as quais conhecidas personalidades do meio sindical, político e cultural do País, acompanhou com vivo interesse e participou num debate que, do princípio ao fim, se revelaria profundo e esclarecedor.

No início do encontro, Odete Santos, a quem coube dirigir os trabalhos, lembrou que, nesta como noutras matérias que dizem respeito aos direitos das mulheres, o PCP não só foi pioneiro como empurrou outros partidos à tomada de medidas.

Antónia Tomasini, que a seguir tomou a palavra, referiu-se à experiência italiana e à lei 194, que em 1978 despenalizou o aborto, até à data considerado como «delito contra a raça».
Em 1982, a lei foi reforçada por um referendo que deu umna vitória esmagadora ao Sim à despenalização, generalizando a informação, fazendo decrescer o número de abortos, tornando possível a afirmação de que o aborto jamais foi considerado um método contraceptivo.

Dominique Benoit Frot, por sua vez, considera a luta pelo direito aborto, um direito fundamental das mulheres e uma etapa essencial na sua emancipação.
Em França, o número de abortos diminuíu, o recurso ao aborto é acidental e as mortes quase desapareceram (antes da aprovação da lei, havia quase uma morte por dia, agora verificam-se menos de duas mortes por ano).
Em sua opinião, as mulheres, agora, ao responsabilizarem-se pelos seus actos, «oferecem às crianças outros modelos de identificação, que não os patriarcais.» E têm finalmente «direito ao domínio da sua fecundidade.»

O dr. Maia Costa, por sua vez, congratulou-se com a verificação do que, já se sabendo, foi, contudo, confirmado pelas convidadas estrangeiras no debate: «que a despenalização do aborto faz diminuir o número de abortos.»
E lembrando que no próximo referendo o que se vai decidir é uma questão jurídica, referiu a ineficácia da actual lei.
Quanto à protecção do feto, que tão hipocritamente é invocada, lembrou que este não é tratado como pessoa no Código Penal, onde o aborto é considerado como ataque à vida intra-uterina e nunca como homicídio.
Em 1966 é que o Código Civil considerava o casamento como um «contrato entre o homem e a mulher para a vida em comum e procriação». Hoje a mulher deixou de ser uma mera «depositária».

No debate que a seguir teve início, a assistência - onde mulheres e homens eram em número quase idêntico -, levantou várias questões, no fundo as mais candentes hoje na opinião pública.

Assim, por exemplo, enquanto um dos presentes lembrava que «as pessoas que dizem não ao aborto são as mesmas que estiveram contra a aplicação da educação sexual nas escolas e apresentam reservas em relação ao Planeamento Familiar», uma dirigente sindical contava a sua experiência no contacto com trabalhadoras.
Designadamente foi focado o aspecto da desinformação existente e, concretamente, o caso de muitas trabalhadoras que se dizem contra o aborto - «que é morte» - mas a favor do «desmancho».


Um avanço de civilização

Numa curta intervenção de encerramento dos trabalhos, Carlos Carvalhas falou da batalha pela tolerância que se está a travar: «uma batalha pela tolerância, pela verdadeira cidadania, pela defesa da liberdade individual e pela democracia. Uma batalha contra a hipocrisia, pela emancipação do ser humano, pela emancipação da mulher.»
Mas, para os comunistas - disse -, é também uma questão de saúde pública e de avanço de civilização.
«Nós estamos nesta questão com uma grande seriedade, uma grande responsabilidade», afirmou, lembrando que o PCP foi o partido que apresentou os três projectos de lei que hoje são lei da Repúblicas - do Planeamento Familiar, da educação sexual, da protecção da maternidade. Depois, denunciando aqueles que se mostram «muito preocupados com a vida» mas «não estão preocupados com as condições sociais, nem com a morte materna, nem com o parto em condições inaceitáveis», disse ser a campanha pela despenalização do aborto também «uma batalha contra a hipocrisia», sabendo-se, «pelo que temos visto aí nalguns folhetos e pelas declarações de alguns bispos que se eles pudessem já tinham acendido a fogueirinha.»
A esses, Carvalhas lembrou que «a intolertância, a calúnia e o insulto não são valores cristãos nem valores da civilização.»
Corroborando ainda o que alguns dos presentes afirmaram o Secretário-geral do PCP apelou ao empenhamento de todos na campanha do referendo de dia 28: «pode-se pensar que a batalha está ganha, pode-se pensar que as sondagens nos dão já uma inclinação muito positiva.» Mas, alertou, de facto ela não está ganha e exige de todos um grande empenhamento.
É preciso esclarecer que o que está em causa «não é o sim ou não ao aborto». O que está em causa é «uma questão de saúde pública, é retirar o aborto «da esfera clandestina», é o sim ou não ao avanço da civilização». Esta a questão fundamental «de que não nos podemos deixar desviar».

Apelando, mais uma vez, ao empenhamento de todos nesta batalha, Carlos Carvalhas reiterou as palavras de uma participante, chamando a atenção para o facto de o termo aborto ser conhecido como «desmancho» em muitos meios, devendo «nós usá-lo também no nosso vocabulário. »

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SIM - uma vitória de todas as mulheres

Em França, a despenalização do aborto resultou de uma lei aprovada no Parlamento em 1975, não tendo sido sujeita, por isso mesmo, a qualquer referendo. Ela corresponde a um direito fundamental das mulheres, ou seja, o direito de ter um filho quando e nas condições em que decidirem, e representa uma etapa essencial na emancipação das mulheres.

Em depoimento ao «Avante!», Dominique Benoit Frot lembra que, apesar de ter entrado imediatamente em vigor, a lei foi contudo aplicada com alguma lentidão, em virtude da necessidade de criar algumas novas estruturas, nomeadamente os Centros para a Interrupção da Gravidez. Ainda hoje, uma grande reivindicação das mulheres é a atribuição de mais meios a estes centros e de um real estatuto profissional para os médicos e todo o pessoal que aí trabalha.
Também o prazo de 10 semanas para a realização da IVG, previsto na lei francesa, se tem revelado insuficiente. Foi um prazo que - tal como em Portugal - resultou de negociações e necessidade de consensos, mas cujo alargamento para as 12 semanas o PCF e as mulheres estão a exigir.
E também em França, ao contrário do que os adversários do aborto pressagiavam, o número de abortos baixou bastante com a aprovação desta lei. Os casos de interrupção da gravidez que hoje se verificam são quase todos acidentais, acabou-se praticamente com as mortes fruto de aborto clandestino e com todas as sequelas psicológicas e físicas que dele resultavam, nomeadamente a esterilidade, assim como com o tráfico financeiro que existia sobre o corpo das mulheres.
Além do mais, a penalização do aborto significa que as mulheres têm que pagar um preço mais alto que os homens pela sua liberdade, sublinha Dominique.
Não se pode dizer que hoje, em França, exista aborto clandestino, mas há casos em que ele se verificará, prossegue. Isso pode acontecer, por exemplo, entre mulheres com situação económica muito difícil e vítimas privilegiadas das políticas de regressão social. Ou, por se aperceberem da sua gravidez já depois das 10 semanas, verem-se obrigadas a recorrer à interrupção, muitas vezes em Espanha.
Daí a existência de um grande movimento, em que participa o Partido Comunista e um Colectivo Nacional dos Direitos das Mulheres - que integra 166 organizações e associações de mulheres -, no sentido de alargar o prazo de dez para 12 semanas. Em 1995, uma grande manifestação exigiu também esse alargamento.
Tudo isto, naturalmente, a par de um grande esclarecimento e do trabalho realizado nos Centros, com entrevistas de aconselhamento às mulheres, geralmente em situação de desespero, que querem recorrer à interrupção da gravidez e para quem, aliás, a lei foi feita.
Existe ainda um trabalho particular de informação e prevenção dirigido às adolescentes. Porque, para Dominique Benoit Frot, não é possível desligar o direito ao aborto do direito à contracepção e à informação, uma das grandes reivindicações das mulheres francesas.
Finalmente garante que está feliz por se encontrar entre nós e confiante na vitória do Sim no referendo do dia 28, porque essa será uma vitória de todas as mulheres.

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Um trauma para as mulheres

Para Antónia Tomasini ,- a quem o «Avante!» solicitou uma entrevista que será publicada na próxima edição -, a lei de despenalização do aborto e o referendo que em 1982 a reforçou vieram demonstrar que, contrariamente ao que afirmavam os defensores do não, desde essa altura o número de abortos diminuíu. Por outro lado, a generalização da informação sobre a sexualidade que a lei veio permitir, serviu ainda para provar que o aborto não foi nunca encarado pelas mulheres como um método contraceptivo, sendo, sim, um grande trauma para todas as que a ele são obrigadas a recorrer.
Em Itália, os resultados do referendo - considera Antónia Tomasini - significaram também uma vitória esmagadora das mulheres. Possível porque, sempre que se verificavam pressões por parte de grupos católicos e principalmente de grupos fascistas, as mulheres saíam à rua e ocupavam alguns lugares públicos, tomando nas suas mãos a defesa da lei.
Mas não só. Contrariamente ao que se verifica em Portugal, onde o Partido Socialista não tem posição oficial sobre a questão da despenalização do aborto que no próximo dia 28 vai ser referendada, em Itália o grande movimento era também dos partidos de esquerda.
A 20 anos de distância, pode considerar-se que apesar dos problemas que eventualmente se tenham verificado na aplicação da lei - e eles naturalmente existem - a lei 194 foi e ainda é uma boa lei, que permitiu sobretudo aos jovens tomarem consciência da sua sexualidade.
Por fim, Antónia Tomasini diz que, para ela, direito à vida significa direito à tolerância e, neste momento, quando o desemprego atinge em Itália um tão elevado número de mulheres, a questão que se coloca é já outra: assegurar o direito de a mulher ter um filho, podendo assumir toda a responsabilidade que esse facto implica.

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Sexualidade tem valor próprio

Na intervenção que proferiu no debate, o Procurador-geral adjunto do STJ, Maia Costa, chamou a atenção para algumas «mistificações» que se estão a fazer à volta do referendo sobre a despenalização do aborto.
«O que se vai decidir no próximo referendo é uma questão jurídica, embora se esteja a assistir à tentativa de deslocar a questão para um problema de ordem moral, de consciência, íntima, que nada tem de político. Ora, isto é uma mistificação.»
De facto, lembrou, o que se quer saber é «se uma determinada conduta inscrita no Código Penal como crime se deve despenalizar.» Trata-se, portanto, de um problema de política criminal. Em primeiro lugar, porque falta consenso em torno da penalização (como aliás a realização do Referendo vem demonstrar), em segundo lugar pela própria ineficácia da lei.
Ou seja, em primeiro lugar, para haver penalização de uma conduta tem de haver consenso em torno disso, o que não acontece. Pelo contrário, o que se passa é que mesmo as pessoas que defendem a criminalização da conduta têm uma atitude de tolerância em relação a essa conduta - numa situação de profunda hipocrisia -; em segundo lugar, há uma conduta que é criminalizada «mas essa criminalização não evita a sua constante prática.»
Em conclusão: uma situação ambígua e hipócrita que, não punindo embora as mulheres que praticam o aborto, obriga-as à clandestinidade, e levanta-lhes graves problemas de saúde e até de morte.
Assim, a questão que se coloca é: «que protecção merece o feto? O feto é uma pessoa?» E sobre isto, Maia Costa diz que existem teorias «delirantes», que inclusive consideram que «do óvulo fecundado até ao fim da vida, é-se sempre a mesma pessoa.» Ou seja, uma outra mistificação.
Aliás, no Código Civil português, como em toda a parte, de resto, só «com vida plena» o feto poderia ser considerado pessoa. E o que importa saber é «se a opção da mulher deve prevalecer sobre a vida uterina, quando surge um conflito entre esta e outros altos valores consignados na Constituição».
Na verdade, lembra Maia Costa, a sexualidade feminina, ao contrário da do homem, «foi sempre encarada com uma grande desconfiança, sempre conotada com as forças do mal e necessariamente ligada à maternidade.» Com a despenalização do aborto «opera-se a separação entre sexualidade e maternidade. A sexualidade passa a ter um valor próprio, é uma forma de realização humana.» Surge, por fim, «o conceito de maternidade consciente, que não é um sacrifício ou uma imposição para a mulher».
«Como conciliar, então, protecção com opção»? Maia Costa responde: «com os métodos/prazos, que correspondem àquilo que a medicina diz», ou seja, que «o feto tem um desenvolvimento embrionário, atrasado, até mais ou menos as 12 semanas.» E se, para ele, «a legalização total do aborto não seria naturalmente correcta», o facto de ter-se baixado das 12 para as 10 semanas não obedece a qualquer rigor científico, «é puramente fruto de consensos para obter o voto de mais uns quantos deputados do PS.»
Esta lei representa, contudo, um salto qualitativo, «constitucional e eticamente válido», pois a lei actual não resolve a esmagadora maioria dos casos de interrupção da gravidez, que diz respeito a mulheres que não querem/não podem assumir a gravidez.
Como última «mistificação», Maia Costa denuncia a afirmação de que «despenalizar é ser favorável ao aborto». «Não é verdade» - garante - «é, sim, querer-se lutar contra o aborto com uma arma eficaz.»

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Opiniões

O «Avante!» continua a recolher depoimentos de homens e mulheres que, independentemente do quadrante profissional, formação ou vivência, se manifestam pelo sim à despenalização do aborto, numa atitude de solidariedade para com o sofrimento das mulheres que, como último recurso, se vêem obrigadas a praticá-lo.


Maternidade - um acto de amor

Assim que soube que em Portugal se ia organizar um referendo sobre a IVG, logo me lembrei das mulheres com o meu coração, com o meu ventre de mulher.
Quem pode decidir no nosso lugar sobre o nosso desejo de maternidade? Quem pode pensar, sofrer em nosso nome?
Sou mãe de uma menina de oito anos e querer a despenalização do aborto é preservar a escolha de ser uma mãe feliz, satisfeita, de uma criança que será, ela também, livre e responsável. Escolher ser mãe é, «além do mais, amor», consentir, resignar-se ou suportar ser mãe é uma violência que insulta a vida em si mesma.
Despenalizar o aborto não é recomendá-lo ou desejá-lo.
Em França, a lei Veil não teve como consequência um aumento das IVG mas, bem pelo contrário, um melhor conhecimento e domínio do seu próprio corpo por parte das mulheres, a quem se entregou, ao mesmo tempo, a sua liberdade, a sua responsabilidade e a sua dignidade.
Mas, como francesa, não tenho a pretensão de apresentar um ponto de vista que se possa assemelhar a uma lição!
A questão do aborto não pode ser decidida por aqueles e por aquelas que recusam, sempre em todos os domínios, a autonomia da mulher. Os mesmos que não aecitaram a coragem política de Simone Veil, querem também rever a abolição da pena de morte por via referendária. O papel, o dever de um político é o de tomar as decisões, por vezes contra uma maioria mal informada ou manipulada, que fazem evoluir o humano, que fazem progredir a sociedade.
É por isso que este referendo, qualquer referendo sobre questões como esta, parece-me, sim, um sinal de cobardia política.

Alina Pallier
(Jornalista e deputada independente pelo PCF no PE)


Um referendo injustificado

Estou de acordo com a Interrupção Voluntária da Gravidez porque, como é por todos reconhecido, a sua despenalização não obriga ninguém à sua prática.
O que está no centro do referendo e da campanha que o envolve é a manutenção da pena de prisão até três anos - que a lei actualmente prevê para as mulheres que recorram ao aborto - ou a permissão legal da sua realização, por decisão responsável da mulher, nas primeiras dez semanas, em condições de assistência e segurança médica.
Numa é poca em que se põem em causa os mais elementares direitos dos trabalhadores (homens e mulheres), através de práticas de contratação de mão de obra cada vez mais clandestina e precária, e se tentam legitimar estas mesmas práticas recorrendo a alterações da legislação laboral e utilizando a Assembleia da República sem respeito pela vontade dos trabalhadores e suas ORT's, porquê submeter a referendo a IVG, matéria do foro íntimo de cada um, depois de votada e aprovada maioritariamente na AR?

A resposta é simples, pretende-se continuar a restringir a liberdade da mulher, o seu direito de opção, como acontece em relação a muitos outros direitos. Mas estou convencido que, pela justeza do que está em causa, o SIM vai ser claramente maioritário.

Júlio Vintém
(membro d0o CC do PCP)


Uma lei desajustada da vida

O que está em causa no referendo sobre a IVG, é apenas retirar do Código Penal a norma que condena a três anos de prisão as mulheres que recorrem ao aborto e, como consequência, admitir-se a sua realização, por decisão responsável, nas primeiras 10 semanas nos estabelecimentos de saúde públicos e em condições de assistência e segurança médicas. Não existe nisto qualquer juízo moral ou ético.
Porém, não faz sentido manter no plano jurídico normas que a prática social não reconhece.
O número de abortos clandestinos mostra isso mesmo.
Por outro lado, a «descriminalização» não constrange ninguém. Pelo contrário, cada um fica livre face aos valores éticos e sociais que perfilhar, de assumir responsavelmente as suas decisões, sem medos repressivos da lei, nem intolerâncias dogmáticas.
Por último, o direito a poder abortar tem como reverso o direito de não pretender abortar, isto é, o direito a uma maternidade-paternidade consciente. Significa que a sociedade e o Estado têm o dever de proporcionar aos seus cidadãos meios materiais para a realização em condições de dignidade, deste objectivo social.
O direito ao emprego, ao salário, à habitação, à saúde, à educação sexual dos jovens não poderá ser afastado deste debate.

Manuel Veiga (Médico)


«Avante!» Nº 1281 - 18.Junho.98