TRIBUNA
Debate democrático, pede-se!
Por João Amaral
O debate em democracia assenta em convicções e
argumentos. Repudia a baixeza dos insultos e calúnias, tal como
a torpeza de insinuações cobardes.
Analisado quanto ao seu conteúdo,o debate sobre a
despenalização do aborto tem-se desenvolvido de forma não
linear. Muitos são os que intervêm, pelo "sim" e pelo
"não", com os seus argumentos, expostos como sabem e
podem, mas dentro das regras do debate democrático. Muitos são
os que apelam ao respeito pelas opiniões alheias e praticam esse
respeito. Mas há também quem tenha escolhido a via do
terrorismo verbal, das ameaças, dos insultos. E das
insinuações torpes.
Gostem ou não os
partidários do "não" (e que são os que resistem à
mudança contida na pergunta em referendo), tem sido de entre
eles que têm surgido as vozes insultuosas, mesmo que poucas e
minoritárias. É preciso explicar a quem assim procede que isso
não é só sinal de baixo carácter. Se querem ferir os que têm
outra opinião, claro que o conseguem. Ninguém é imune a
insultos torpes e insinuações.
Mas, o que fundamentalmente mostram essas vozes insultuosas, é falta
de argumentos. E alguma invejazinha por a argumentação em
favor da mudança da actual lei ser mais convincente, mais
luminosa, e mais compreensível e visível.
Essa falta de
argumentos é significativamente demonstrada no Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 288/98, que apreciou a
constitucionalidade e legalidade do referendo (cfr. Diário da
República nº 91/98, Suplemento, I Série A, de 18 de Abril
passado).
Este Acórdão tem sido pouco referido, talvez porque as
posições que o Tribunal Constitucional foi assumido ao longo do
tempo o tornaram num Tribunal muito controverso e pouco amado ...
Mas, a leitura do Acórdão é útil, particularmente pelos que
hesitam na resposta afirmativa por se sentirem tocados pela
argumentação sobre a protecção da vida intra-uterina.
O Acórdão do
Tribunal Constitucional merece leitura precisamente por
demonstrar que, mesmo para os que assim pensam, há
fundamentação para tomarem a posição de "sim" à
despenalização do aborto, nas condições referidas na
pergunta.
O Acórdão invoca a análise da legislação da União Europeia,
bem como relevantes pareceres, estudos e decisões judiciais
portuguesas ( designadamente, os Acórdãos do Tribunal
Constitucional nºs 25/84 e 85/85, de apreciação da Lei nº
6/84, que introduziu no nosso direito a possibilidade legal de
realizar a interrupção voluntária da gravidez por razões de
ordem terapêutica - perigo de vida ou para a saúde física ou
psíquica da mulher; eugénica - grave doença ou malformação
do feto; e ética - gravidez resultante de violação, ou, de
forma mais ampla, de crime contra a liberdade e
autodeterminação sexual).
O que é importante
no Acórdão é a demonstração de que, mesmo aceitando que o
artigo 24º da Constituição ( direito à vida) abranja também
vida intra-uterina, mesmo assim a solução que decorre do
referendo, de despenalização da I.V.G. nas circunstâncias e
prazos definidos na pergunta, não viola um princípio da
protecção dessa vida intra-uterina e não é por isso
inconstitucional.
Esta demonstração é feita para o sistema previsto na pergunta,
o sistema de prazos. Mas, é muito interessante fazer a análise
de legislação de outros países, que, sem admitirem o sistema
de prazos, mesmo assim admitem a I.V.G fundada em razões
económico-sociais. Foi o que se passou na Alemanha ( entre 1975
e 1992) e é o que se passa em Espanha.
Na Alemanha, uma célebre sentença do Tribunal Constitucional
Alemão, de 1975, partindo da asserção de que o direito à vida
abrangeria toda a vida intra-uterina após. a nidação,.
concluia que na ponderação entre esse direito e o direito da
mulher ao livre desenvolvimento da personalidade, existem certas
situações que não tornavam exigível que ela levasse a
gravidez até ao seu termo sob a ameaça de sanções penais. Na
sequência desta decisão, foi aprovada uma lei que, sem
consagrar o sistema dos prazos, permitia no entanto a I.V.G. por
razões sociais, em caso de especial angústia da mulher.
Mais tarde, em 1992, o Tribunal mudou a sua apreciação, aceitando o sistema de prazos. Com a mesma premissa sobre a vida intra-uterina, o Tribunal ponderou o conflito entre a obrigação do Estado de proteger a vida intra-uterina e a protecção de outros direitos, designadamente os direitos da mulher à vida e à integridade física, à dignidade humana e ao livre desenvolvimento da personalidade. Daí concluiu o Tribunal que o legislador podia ponderar esse conflito, admitindo que em certos casos não devia ser imposto o dever de levar a gravidez até ao seu termo. Mas não só, o Tribunal admitiu expressamente que o legislador pudesse adoptar um conceito de protecção da vida intra-uterina que, na fase inicial da gravidez, se centrasse em medidas de carácter preventivo, por exemplo o aconselhamento da gravidez, abandonando nesse prazo a ameaça penal.
Já em Espanha, a lei tem o mesmo conteúdo essencial que a actual lei portuguesa. O Tribunal Constitucional considerou que, embora o embrião constitua um bem jurídico constitucionalmente protegido, não goza ainda, no entanto de um direito absoluto à vida, reconhecendo que pode haver conflito com os direitos da mulher ( incluindo o seu direito ao livre de desenvolvimento da personalidade), e portanto situações em que estes direitos devem prevalecer. Assim, na aplicação da lei, todas as autoridades (incluindo portanto as policiais e judiciais), aceitaram a invocação das razões sociais para a realização legítima da I.V.G., ancorando essas razões sociais no aborto por razões de saúde psíquica da mulher.
O Acórdão do Tribunal Constitucional português nº 288/98, para que se chama a atenção, desenvolve e aprofunda a argumentação em torno destas questões. O Acórdão aceita que o artigo 24º contenha como dimensão objectiva (isto é, não subjectivada num indivíduo) a protecção da vida intra-uterina. Só que essa protecção não se pode confundir com o direito à vida de indivíduo já nascido. A realidade é que o direito faz a distinção, quando, por exemplo só atribui personalidade aos já nascidos ou quando distingue o crime de homicídio e o aborto. Mais ainda mais, do que o direito, essa distinção é feita pelo "sentimento jurídico colectivo", que pondera muito diferentemente quem faz um desmancho no início da gravidez, de uma situação de "morte" do feto pouco antes do nascimento, ou, evidentemente, de um infanticídio ou homicídio.
O Acórdão sublinha que, saber se o conflito entre protecção da vida intra-uterina e a protecção dos direitos da mulher exige ou não o recurso à ameaça penal, é um problema que só pode ser resolvido pelos princípios de política criminal. Ora a tutela penal só se justificará se for proporcionada, e, para ser, precisaria de ter eficácia, o que não se verifica na realidade social. Pelo contrário, a ameaça penal, não só é ineficaz, como pode ser causa de grave lesão de direitos fundamentais da mulher. Além de ir contra o já referido "sentimento jurídico colectivo".
Por tudo isto, pode concluir-se no Acórdão o seguinte : "Assente,v.g., que o aborto constituiu um acto irrecusavelmente negativo e intrinsecamente mau, daí não decorre axiomaticamente a necessidade da sua criminalização".
No espaço deste artigo, não é possível, sequer, resumir adequadamente uma argumentação que se desenvolve no Diário da República em 22 densas páginas a duas colunas e que demonstram de forma aprofundada como, mesmo se sendo contra o aborto, há sólidas razões para votar a favor da despenalização, para votar "Sim".
Evidentemente que continuará a haver quem queira que tudo continue na mesma, apesar das consequências que isso acarreta em diferentes planos. E continuará a haver alguns (poucos) que preferem aos argumentos os insultos e as torpes insinuações. Haverá sempre quem não aceite o debate democrático.