A Expo 98 e a Zona Oriental de Lisboa

Por Modesto Navarro


Gostaria que este texto fosse lido com olhos de ver e de ler. Gostaria de dizer à partida que acompanhei, na Assembleia Municipal, na Assembleia Metropolitana da Área Metropolitana de Lisboa e individualmente, passos importantes que foram dados para que esta realização da Expo 98 fosse, de facto, um contributo decisivo para a modernização e a transformação da zona oriental, da cidade e da região.
Sofri, como muitos sofreram, os impactos da destruição de ruas, casas, empresas e sítios outros que faziam parte da vida local de há muitos e muitos anos. Tudo isso analisámos e tentámos transformar em decisões e operações que levariam a novas e mais desenvolvidas situações de progresso, de bem-estar, de saber e de cultura para todos.
A Assembleia Metropolitana e a Junta Metropolitana tentaram colaborar em áreas que diziam respeito aos dezoito concelhos que representam. Não houve, infelizmente, um diálogo aberto e colaborante, de forma integrada, que levasse cada concelho a participar, nomeadamente no Pavilhão do Território, com o que de mais representativo existe nestes Municípios. A Junta e a Assembleia realizaram uma visita à Expo 98 em construção, em Novembro de 1997, e não houve nesse dia um debate necessário e participativo.
Hoje, a Expo 98 aí está, construída, visitada, usufruída por dezenas de milhar de pessoas que a pagaram e que a pagam, ao entrarem e ao percorrerem as áreas e os pavilhões, ao apreenderem com orgulho e prazer os conteúdos científicos, culturais e avançados de que se compõe um evento notável e marcante para homens, mulheres, jovens e crianças que sairão de lá mais ricos, mais conhecedores e criativos perante a vida e o mundo.
Foram gastos, na construção da Expo 98, 370 milhões de contos? Ou 400? Alguém o dirá. Mas deixem perguntar ainda se o Estado vai comprar instalações que já pagou, ou como será feita cada passagem de edifícios da Expo 98 para futuros serviços públicos? Os contribuintes pagarão, o Estado pagará por eles, com o dinheiro deles, novamente esses espaços, para serem adaptados a ministérios e a outras áreas de actividades do poder central?
Outubro é já aí adiante. A Expo 98 vai ser um factor dinamizante de economias, de culturas, de alegrias e de saber nas nossas vidas e nas vidas dos que virão a Portugal. Bom, mas valerá a pena olhar à volta, desde já, visitar outros sítios, saber o que se passa nas partes visíveis, diversas, marcantes e ainda desprotegidas da zona oriental. Saber, por exemplo, se as áreas previstas, quando da preparação da Expo 98, para futuras instalações de unidades de produção avançada, não poluentes, estarão de facto ainda destinadas à (re)criação de empregos e à fixação das populações mais jovens. Saber se passará a haver um mercado (que não há) numa freguesia tão grande e popular como Marvila, que passará rapidamente de 60 000 a 80 000 habitantes. Saber se vão ser construídos o Centro de Saúde e o hospital tão necessários naquela área enorme da cidade. Ver se passarão a existir, finalmente, espaços de lazer cuidados, jardins, condições de vida mínimas em Chelas e noutras zonas degradadas.
Temos de olhar para a zona oriental de Lisboa com olhos de ver e de amar o futuro das populações, que ainda hoje, quando vão ao centro da cidade, dizem "Vou a Lisboa", como se vivessem lá longe, na província.
Que a Expo 98 não seja só aproveitada para propaganda pré-eleitoral desta governo que quer ter a maioria absoluta a todo o preço nas próximas eleições. Que não seja (politicamente, demagogicamente) outra exposição (salvo seja!) como a do "Mundo Português", que resultou em maior fixação do regime salazarista e na criação de zonas para elites onde estava previsto criar habitação e zonas de vida digna para camadas mais populares.
São estes desafios enormes que já aí estão, perante o governo do PS, perante o Município de Lisboa e perante todos nós, que não devemos ver só a árvore que cresce e nos envolve e não ver a floresta enorme de propostas e de desenvolvimentos possíveis e decisivos para a zona oriental, para Lisboa, para o concelho de Loures e para toda a região.
Não há, neste texto, uma palavra ou intenção de deslustrar o que tem a maior valia e o maior encanto para os nossos olhos e sentidos. Que a Expo 98 seja para ti, para mim e para todos, um mundo enorme a fruir, a apreender, dia após dia, noite após noite, e que seja a porta realmente aberta, as mil portas que tragam de facto mais desenvolvimento, mais trabalho e bem-estar a quem o merece, os mais desprotegidos, as populações locais e regionais, esperançadas e expectantes perante novos desafios.

A Expo 98, os intelectuais, os trabalhadores e as populações locais da zon aoriental de Lisboa podem estar juntos num texto como este?

O senhor Rocha de Matos, que tem aquele ar simpático e foi sempre bom rapaz, comprou a Plessey Automática, num dos consulados de Mário Soares, por uma libra, ou por um penny, ou por um shilling, não se sabe bem, aos donos ingleses, que estavam fartos das lutas dos trabalhadores da empresa e queriam largar o osso ainda vivo na zona oriental de Lisboa.
A certa altura, o novo patrão declarou aos trabalhadores que a Automática nunca acabaria; como empresa avançada que era, em recurso último até poderia vir a fazer sapatos; isto era dito para dar respostas enganadoras e lançar nuvens e nevoeiros sobre vicissitudes previsíveis ou já articuladas entre ele e outras figuras e entidades, conjunta e altamente interessadas, como era e é óbvio, no aprofundamento do tecido produtivo do nosso país…
Durou dez anos, a epopeia de luta e resistência dos trabalhadores de uma empresa tão conhecida da Avenida Infante D.Henrique que chegou a ter 5 000 trabalhadores. Antes de a encerrar e de pôr brutalmente no desemprego os trabalhadores, o senhor Rocha de Matos recebeu na sede da Associação Industrial Portuguesa uma oferta interessante das mãos dos trabalhadores: os sapatos que a Automática não chegou a produzir, comprados algures pelos operários que lhe queriam recordar a fanfarronada de outros tempos.
Hoje, na zona oriental de Lisboa, estão liquidadas na maioria ou profundamente reduzidas dezenas de empresas que fizeram história e que deram história, prestígio e lutas à classe operária e ao PCP. A saber: Petrogal, Tabaqueira, Utic, Indep, Nacional, Sociedade Nacional de Sabões, Centrel, Vitamealo, Manutenção Militar, Dialap, Sorel Licar, Metalúrgica Duarte Ferreira, Entreposto, Baptista Russo, J.B. Fernandes, Petroquímica, Laboratório Militar, Parafusos Fluorescentes, Swnres, Cimpomóvel, Construções Técnicas Hospitalares e Metalúrgica Luso Italiana, entre outras.
Cerca de vinte mil trabalhadores de uma zona que, em 1987, era a de maior implantação de indústria transformadora na cidade, tiveram de abandonar as empresas, perderam empregos, hábitos, tradições, amigos, vizinhos, casas, traços e envolvências culturais e sociais que dariam muitas histórias, muitos filmes, muitas peças de teatro, se não vivêssemos num país que se esgotou nessa coisa malfadada do neo-realismo e não pode, hoje, fazer qualquer abordagem que cheire a suor e lágrimas, que tenha o mínimo toque de sofrimento que não seja existencial e ludicamente individualista.
A Expo 98 aí está, numa determinada zona expurgada desses malefícios antigos, cinzentos e brutais do trabalho. Irão deliciar-se milhões de pessoas com o Oceanário, os pavilhões, os edifícios, os avanços grandiosos do progresso. Os olhos dos habitantes locais, e dos que tiveram de ir viver para outros sítios da região e do país não serão os mesmos, perante tanta grandeza e avanço.
Um casal ambicioso (como outros casais sociais q.b. …) vendeu há quatro anos a sua casa, que ficava próximo da rua D.João V, em Lisboa, para entrar numa roda viva de compra e venda de outras casas; comprou uma, velha, próximo da Avenida Almirante Reis, arranjou-a, mal a habitou e vendeu-a por mais dinheiro, comprando outra em Benfica, onde ainda habita com dois filhos, à espera que lhe entreguem o apartamento que tem apalavrado na Expo. Tinham de ir viver para o local sagrado da moda, e, por isso, uma secretária de Administração e um quadro médio-superior desta cidade destruíram vínculos seus e dos filhos ao sítio onde viveram muitos anos para negociarem aqui e ali, até prepararem o mínimo de condições financeiras para se apresentarem à sociedade, lá para Outubro, como orgulhosos habitantes de um apartamento da Expo.
Que se passa no resto da zona oriental? Auto-estradas e outras vias rasgaram campos e vales, milhares de carros e autocarros penetram determinadamente por outros caminhos e panorâmicas. Na Avenida Infante D. Henrique, uma operária foi atropelada e morreu. Nas proximidades da escola nº 55, nos Olivais, também uma criança foi atropelada. Na zona do Pão de Açúcar, as pessoas vêem-se e desejam-se para atravessarem as ruas com os sacos das compras. Onde estão os desenvolvimentos necessários, a segurança, os semáforos, as passagens e as promessas de melhoria das condições de vida na zona oriental, para todos? O quotidiano das populações complicou-se, a insegurança cresce, a droga tornou-se tão normal que, em certas zonas, sobretudo perto de escolas, já a oferecem de graça, para criar mais clientelas.
O Pavilhão Multiusos não será suporte de actividades desportivas das associações locais, porque se construiu para maiores e mais bem pagos e aventurados eventos, e as zonas de construção que no Plano Director Municipal e planos de pormenor estão previstas para habitação social são já objecto de olhares conspícuos e de desígnios outros, ou seja, passarão, se não nos opusermos, a zonas de construção emblemática e fina, para famílias à procura de estatuto social mais evidente e elevado, em tal zona gratificante e cara da Expo, com riscos de aumentos de volumetria e de altitudes até liquidadoras das vistas para o rio que ainda são populares e graciosas.


Que têm os intelectuais e a vida social e cultural da cidade e da região
a ver com isto?

Há histórias, uma história, mil vidas e traços naquela zona que abarcou quase metade da população da cidade. Há memórias, patrimónios, espaços, lutas dos trabalhadores e de militantes do PCP, longas filas de sonhos realizados e adiados; produção e produções importantes e até decisivas para a vida do país dali saíram e alimentaram outras realidades e economias; milhares de homens e mulheres ali tiveram as suas universidades, as fábricas e outras empresas que amavam mais que os donos, ali lutaram e ali se fizeram militantes da vida e do futuro. Agora, uma zona altamente privilegiada, social e culturalmente, cresceu pelo esforço de milhares e milhares de operários e técnicos e criadores que neste momento olham a obra feita e choram por terem de partir para outros lados. Aconteceu isto, camaradas, quando um grupo de militantes do Partido lá esteve recentemente, na Expo, em confraternização com os trabalhadores.
O que fica? Uma zona separada pela linha do caminho de ferro, que será local de passeio aos fins-de-semana e nas noites de grandiosos espectáculos; zona devidamente acompanhada e em segurança para habitantes e visitantes, que terão nível de vida compatível com as exigências do progresso e da modernidade avançada do capitalismo, na perspectiva clarividente e na defesa intransigente dos objectivos de um governo que integra ex-revolucionários tão ágeis a acocorarem-se perante o neo-liberalismo e seus donos e senhores.
Tal como é já proibido levar farnel para a Expo, mesmo que se pague a bela entrada e os restaurantes obriguem a bichas demoradas e tremendas, outras complicações se levantarão a quem quiser ali passear, lá para Outubro-Novembro deste ano e nos anos seguintes. Entretanto, veremos se a população das centenas de ruas e sítios da zona oriental beneficiaram alguma coisa com o pó e as obras que aguentaram estoicamente durante três anos. É isso que teremos de analisar, nós também, os intelectuais que gostamos do progresso e da modernidade mas questionamos quem isso privilegia, quem esteve e está na mira dos governos, se umas minorias mais ou menos privilegiadas ou idiotas e vaidosas, se a massa que luta, paga impostos e continua a viver à espera da reabertura das ruas de acesso às suas casas que foram encerradas pelas obras da Expo, que quer mais escolas, espaços culturais e desportivos, uma vida digna que esteve provavelmente só em vista nas promessas e propaganda feitas enquanto a Expo crescia.
Vamos estar atentos à especulação com os terrenos; vamos ver se o tecido produtivo e o emprego são revitalizados, de forma moderna e avançada, como eles proclamavam; vamos ver se tudo não passa de mais uma aplicação criteriosa de centenas de milhões de contos, nos sentidos de criar áreas protegidas e salvaguardadas para quem já é protegido e beneficiado e na propiciação de novos e suculentos negócios a altíssimos investidores nacionais e estrangeiros.
A Expo 98 vai agora no adro. Saiu da igreja dos segredos e negócios empacotados e aí está, para ser vivida por milhões de pessoas até fins de Setembro. Interessa estarmos atentos, ouvirmos as populações locais e crescermos em iniciativas de defesa e projecção do que precisam e merecem. Todos nós pagámos, pagamos e pagaremos a Expo. Que ela não seja exclusivo de alguns, como se vê já em desígnios de mudanças de orientação do governo e de grupos económicos. Que a zona oriental da cidade, tal como outras zonas de Lisboa e o distrito sejam objecto de estudo e de luta das camadas dos intelectuais, com os trabalhadores e as populações, para mais avanços na cultura e na vida social e económica. Não basta ter belos discursos e produzir excelentes projectos de acção. Isso nunca nos bastou. O que há para fazer, com coragem e determinação, com a coragem e a determinação de José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, Fernando Lopes Graça e de tantos outros intelectuais corajosos e vivos, comunistas e outros democratas, é estar atento, é participar e dizer "o rei vai nu", ou o "PS é ainda mais elitista e de direita de que o PSD, no governo e como partido", mas com exemplos concretos e lutas que devemos empreender, iniciativas que devemos tomar e que nos coloquem nos terrenos onde gostamos de viver e de agir, ao lado dos que anseiam, sonham e sofrem porque são humanos, porque trabalham e merecem o melhor dos melhores projectos e resultados que a vida nos pode propiciar.


«Avante!» Nº 1281 - 18.Junho.98