A TALHE DE FOICE

À sombra do Vesúvio


O Vesúvio, na margem oriental do Golfo de Nápoles, em Itália, é o único vulcão do continente europeu que há quase 19 séculos manifesta actividade regular, extravagância que até nas línguas latinas deixou rasto. Em português, quando alguém apelida alguma coisa de «estrombólica» ou «estrambótica» (tanto faz, porque o segundo é derivação popular do primeiro) está, exactamente, a reduzir essa coisa à condição de extravagante, se não mesmo de ridícula. A origem estará nas famosas erupções do Vesúvio, designadas por «vulcano-estrombolianas» porque umas vezes rebentam com grande produção de cinzas e lava espessa (tipo «vulcânico»), outras eclodem com magma fluído, poucas cinzas mas muitos gases explosivos, que projectam materiais sólidos como se disparassem bombas (à semelhança do que ocorre no vulcão de Estrômboli, uma ilha a Norte de Itália - a outra hipótese, aliás mais lógica segundo alguns, para a raiz fundadora do supracitado adjectivo).
De qualquer modo, um vulcão «estrombólico» e digno de pouca confiança, apesar da persistência e regularidade das suas manifestações.

Todavia, a comprovada instabilidade do Vesúvio nunca conseguiu afastar os homens das suas férteis encostas, onde desde a antiguidade se produzem diversos tipos de cereais e vinhos afamados. Foi lá que se instalou Espartaco na década de 60 antes de Cristo para desbaratar sucessivos exércitos romanos que procuravam aniquilar a sua revolta dos escravos, foi lá que, pouco mais de 100 anos depois, na erupção de 79 da nossa era - a primeira e a mais violenta registada na sua longa história de 19 séculos de actividade -, as cidades de Pompeia e Herculano foram mumificadas pelas cinzas e Plínio, o Velho, perdeu a vida por excesso de curiosidade.

Espartaco renasceu das cinzas do esquecimento com que as legiões de Pompeu julgaram destruí-lo, passando directamente para a História universal das lutas emancipadoras dos homens, enquanto Pompeia e Herculano conservaram nas cinzas vulcânicas o impressionante registo físico das vítimas no momento da tragédia, reconstituídas ao pormenor no simples preenchimento com gesso dos alvéolos deixados pelos seus corpos carbonizados.

Quanto a Plínio, o Velho, não ficou na História por ter morrido asfixiado nos arredores do vulcão quando, ao comandar a esquadra romana em Misenum durante a erupção de 79, quis observar de perto o fenómeno e desembarcou em Stabiae, expondo a sua asma aos vapores fatais.

A honra de figurar nos compêndios e enciclopédias deve-a Plínio, o Velho, à sua frenética actividade no domínio da escrita, chegando até nós qualquer coisa como 37 volumes da sua Historia Naturalis e sabendo-se que se perderam na poeira do tempo pelo menos outros tantos volumes sobre a História Romana.

É certo que o mérito científico da sua História Naturalis não consta ser grande espingarda. Diz quem teve a persistência de o ler e estudar que o velho Plínio discreteava sobre tudo e mais alguma coisa - Astronomia, Meteorologia, Geografia, Mineralogia, Botânica, Zoologia, instituições e invenções humanas, história das belas-artes, etc., etc. - metendo no mesmo saco o verdadeiro e o falso, o provável e o fantasioso, enquanto se perdia em raciocínios frequentemente obscuros, umas vezes por ignorância das matérias tratadas, outras por, simplesmente, não compreender o sentido das passagens que citava ou traduzia.

Todavia, um mérito ninguém lhe tira: o de nos ter legado um aluvião de informações únicas sobre o seu tempo, dado que aborda uma infinidade de assuntos de que não há qualquer outra fonte de informação, consagrando-o, quiçá, como o primeiro autor «estrombólico» de que há registo e, portanto, fundador da velha escola da parlapatice que hoje se continua a praticar com afinco.

E é aqui que bate o ponto desta estrombólica conversa.

Um ponto dirigido quer aos reescrevinhadores da História quer aos que «trabalham» para ficar nela, suando em infatigáveis exercícios de show off como a rapaziada do body building destila nos ginásios de musculação.

As «figuras do século» não se coreografam no presente nem os lugares na História se ganham por candidatura.

À sombra do Vesúvio, um vencido como Espartaco pode impor-se ao seu vencedor de que ninguém se lembra, tal como uma obra medíocre como a de Plínio, o Velho, pode tornar-se uma preciosidade pela circunstância de constituir um registo único.

O mais são cinzas, onde até os mortos podem entrar no testemunho da História pelo simples facto de morrerem. — Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1281 - 18.Junho.98