TVisto

Apontamentos em tempo de feriados

Por Francisco Costa


«Bastaram cinco anos a uma estação privada com muito menos dinheiro, muito menos pessoas e muito menos experiência (a SIC) para provar que os privados fazem não só melhor entretenimento como melhor informação.»

(Eduardo Cintra Torres - «TV 1998» - «Público», 15.06.98)


Quem ainda não tenha percebido a verdadeira «estratégia da aranha» que, desde há muito tempo, paulatinamente, vem sendo delineada no sentido de serem acumuladas sugestões, palpites, «bocas» e, finalmente, «argumentos de peso», objectivos e subjectivos, susceptíveis de conduzir a opinião pública a encarar a admissibilidade da privatização do serviço público de televisão em Portugal – quem tenha andado, portanto, altamente distraído – talvez compreenda agora que tudo se vai conjugando para que a campanha neste sentido adquira contornos mais claros, a ponto de ser possível desferir um ataque final e decisivo na altura julgada apropriada.

Desde as intervenções aparentemente desgarradas e sem nexo (às vezes, de algum modo, despropositadas e apatetadas) de responsáveis máximos do PSD, até às entrevistas concedidas por personalidades ligadas ao meio, passando (pasme-se!) por afloramentos cada vez mais explícitos por parte da «crítica institucional» - tudo tem sido tentado para criar um estado de espírito favorável às pressões junto de um Governo que jamais rejeita a possibilidade de «entregar o ouro ao bandido», constatação que logicamente decorre da observação da sua actuação noutras áreas importantes da vida nacional.

A este propósito, a peça que Eduardo Cintra Torres lançou a público recentemente - e de que acima transcrevemos uma significativa passagem – não pode assim deixar de ser considerada como mais uma acha para a fogueira de uma sinistra campanha a favor da privatização (total ou parcial) da RTP. Uma peça também algo despudorada já que, independente de outras considerações mais sensíveis que poderiam fazer-se a seu propósito, ela joga de forma tortuosa e ardilosa com as meias-verdades - um processo sempre viciado à partida – como é aquela de, numa única frase, apresentar a SIC como capaz de fazer melhor entretenimento e informação. Ora a verdade é que, quanto ao primeiro, sabe-se como a crítica em geral e o próprio Cintra Torres em particular tem zurzido no «tele-lixo» instituído pela estação de Carnaxide e caninamente seguido pelos outros canais. E quanto à segunda, independentemente da qualidade, agilidade e acutilância de certas iniciativas no campo informativo, continua a haver fortes razões para lamentar a inexistência, na SIC, de qualquer alternativa de fundo em termos de debate político, social, económico e cultural, verdadeiramente plural.

Aquilo que não se discute e tem sido escamoteado junto da opinião pública – aquilo que se tem procurado apagar da memória do comum espectador de televisão, empobrecendo e limitando a discussão acerca desta matéria importante para o devir da democracia, também neste campo – é a estratégia de permanente abastardamento e desqualificação da actividade da televisão no nosso país, sobretudo porque a discussão foi deslocada e se centra cada vez mais à volta dos financiamentos do serviço público de televisão entre nós. Ora, não deixa de ser oportuno recordar que tudo começou a agravar-se, neste capítulo, ainda no tempo do «cavaquismo», com a eliminação demagógica da taxa de televisão - como se, afinal, não continuássemos a pagar (e bem!) do nosso bolso a permanente incompetência e irresponsabilidade administrativa dos sucessivos responsáveis da RTP – e, por tabela, com a desregulamentação progressiva das regras quanto à inserção de publicidade na televisão pública, entendida como determinante fonte de rendimento, precisamente ao contrário do que se passa lá fora na maioria dos países da União Europeia (que, nesta área, parece não convir imitar!) e em vez de se eliminar totalmente ou limitar fortemente essa inserção em determinados períodos da emissão, no sentido de mais claramente definir as fronteiras entre canais públicos e canais privados.

Uma definição de fronteiras que passa, também e sobretudo, pela urgente elevação da qualidade da programação no serviço público, abandonando a estratégia «classista» e «elitista» de apenas conferir à RTP 2 essa dignidade e voltando a instituir também a RTP 1 como «estação de referência» em matéria de entretenimento. A não fazer-se isto, a situação não deixará de agravar-se e também não deixará de se aprofundar o fosso entre telespectadores de primeira e telespectadores de segunda – os primeiros usufruindo nas calmas dos seus privilégios para poderem escolher (porque podem pagá-las) as alternativas de programação proporcionadas pela TV Cabo, pelos já instituídos serviços «pay-TV» e pelos anunciados canais temáticos, e os segundos (a esmagadora maioria) cada vez mais vulneráveis e impotentes face à progressiva inundação, em suas casas, de uma programação completamente alienante, desclassificada, anti-social e anti-cultural.

Por isso, contrariando esta estratégia altamente condenável, é necessário continuar a recusar aquilo que nos querem fazer crer como sendo evidências indiscutíveis e, ao mesmo tempo, chamar o Governo ao cumprimento das suas repetidas promessas neste domínio.


«Avante!» Nº 1281 - 18.Junho.98