Cimeira de Cardiff vista à lupa
Uma Cimeira «sem história»
mas com muito para contar



O findar do semestre da presidência britânica da UE ficou assinalado pela realização, em Cardiff, nos dias 15 e 16 de Junho, da cimeira dos chefes de Estado e de Governo dos Quinze. "Cimeira de transição" onde nada se decidiu e tudo se adiou?

No dia em que o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, prestou contas ao Parlamento Europeu, em Estrasburgo, os três deputados do PCP no PE, Joaquim Miranda, Sérgio Ribeiro e Honório Novo, passaram as conclusões da Cimeira à lupa e alertam para que talvez não tenha sido uma reunião tão inócua como parece.


Avante!
A Cimeira de Cardiff foi classificada por muitos meios de comunicação social como uma cimeira de "transição", no sentido de que não teria sido discutido nada de substancial. Foi mesmo assim?

Joaquim Miranda — Como se esperava, não seriam tomadas grandes decisões, daí que, no essencial, as conclusões da reunião se resumam a calendarizar assuntos e temas para reuniões futuras. Julgo ainda que será de ter em conta um aspecto: a Cimeira, que à partida se perspectivava como uma reunião que poderia dar algumas respostas ao problema do desemprego, não só não as deu como foi particularmente marcada por outro tema, as reformas institucionais.

Sérgio Ribeiro— Eu acho que esta Cimeira, mesmo sendo de transição tem, apesar de tudo, muito conteúdo. Há afirmações que são muito perigosas, como a de que em Amsterdão (na cimeira de Junho de 97, que aprovou a revisão do Tratado da UE) houve questões institucionais não resolvidas e que a prioridade é ratificar Amsterdão em todos os países da UE rapidamente e, depois, continuar com o que em Amsterdão ficou no ar, que é uma enorme insatisfação por não se ter avançado suficientemente com as reformas institucionais. A questão institucional aparece aqui como uma preocupação muito grande na sequência daquilo que deixou os federalistas insatisfeitos em Amsterdão.


Esta Cimeira tinha uma ordem de trabalhos bastante ambiciosa, da qual constava a avaliação dos Planos Nacionais de Emprego e a realização do ponto da situação da negociação da Agenda 2000. O que é que saiu desta Cimeira sobre aqueles dois pontos?

Honório Novo — O plano de trabalhos que existia para este Conselho não foi cumprido, não se traduziu no seu resultado. A avaliação dos Planos Nacionais de Emprego acaba por ser protelada e as decisões sobre o emprego relegadas para o fim deste ano. Em relação ao ponto da situação da Agenda 2000 ele foi feito, de facto. Mas também foi feita a constatação de que os progressos visíveis e existentes no estabelecimento de consensos são muito limitados e recuados. Se, por um lado, são feitas algumas referências sobre as modalidades das contribuições para o futuro orçamento comunitário, estranhamente ninguém colocou uma nuance que está ligada a este problema, que é inscrever a discussão da Agenda 2000 no contexto do Alargamento da União e verificar, estudar, quantificar quem é que, potencialmente, retira benefícios deste Alargamento. Isto é, a discussão da Agenda 2000 em termos de orçamento comunitário tem que ser uma balança com dois pratos: quem contribui e quem são os tais beneficiários, quer do Alargamento quer do aprofundamento do Mercado Único. E esta segunda componente nem sequer foi colocada em cima da mesa.

JM — Na sequência do que disse o Honório, há um aspecto que é particularmente marcante. Ao mesmo tempo que não se estabelece uma ligação entre recursos financeiros e alargamento, verifica-se, entretanto, que está estabelecida uma profunda ligação entre alargamento e reformas institucionais, sabendo nós qual o tipo de reformas institucionais que se pretende introduzir. Há aqui, de facto, dois pesos e duas medidas. E isto tem a ver muito com a incapacidade negocial de alguns governos, nomeadamente o governo português, que à partida deram de barato a questão do alargamento e a sua ligação com as perspectivas financeiras.

HN — Há quem ligue a necessidade das reformas ao alargamento, o que aparece claro nas conclusões. Por outro lado, não é colocada a necessidade de dotar o orçamento de maiores meios financeiros para abarcar todos os problemas da actual e futura União alargada. Neste aspecto eu queria recordar que no panorama escrito oficial dos últimos tempos, ninguém tem colocado a necessidade de avaliar, mesmo que minimamente, do ponto de vista quantitativo, quais são as despesas, os custos que decorrem do alargamento para as diversas políticas. Isto é, formulam-se hipóteses de dotações financeiras para a pré-adesão e para a adesão sem saber exactamente quantos e quais países entram e em que momentos.

SR — Quando se lê nas entrelinhas há uma muito ténue luz no fundo do túnel, que é a separação entre as despesas, coisa que não aparecia referida e aparece nesta Cimeira. É um aspecto muito, muito ténue mas que, de certo modo, abre algumas perspectivas, pois há uma distinção entre as despesas relacionadas com a União na sua fase actual e as despesas reservadas para os futuros países aderentes. Há aqui uma pequenina cunha que, se houver capacidade e força negocial, pode - pode! - ser devidamente aproveitada.


É uma nuance que pode permitir exigir um aumento das dotações financeiras para fazer face ao alargamento sem prejudicar países como os da coesão?

SR — Quer dizer que, pelo menos, não está totalmente fechada a porta, uma vez que há distinção entre as despesas. Outro aspecto que me parece importante é haver passagens nas conclusões que são seguidas da referência de que se tratam de hipóteses "rejeitadas por alguns Estados-membros". Isto acontece em duas situações: uma delas tem a ver com o actual limite máximo dos recursos próprios, e a outra é sobre a actual repartição deve ser mais equitativa, que é a posição alemã. O que mereceu oposição de outros Estados-membros. Há duas referências a posições que não são consensuais e que aparecem em partes importantes. Uma, pela qual nos devemos bater, é a de que o actual limite máximo dos recursos próprios seja revisto, a outra é aquela em que a posição é ao contrário, no sentido dos alemães, a quererem que haja uma distribuição equitativa para que não sejam eles, de acordo com a imagem que querem vender, a financiar a construção europeia.

JM — Há um alerta que deve ser feito, até porque pode haver leituras precipitadas e até excessivamente positivas relativamente a esses dois aspectos das conclusões, nomeadamente o facto de não ter havido consenso e muito menos decisões relativamente ao plafond de recursos próprios - 1.27% do PNB da UE -, e também não ter havido consenso nem decisão relativamente à questão dos desequilíbrios no tocante aos encargos e, nomeadamente, a prestação alemã. Isto é verdade, não houve consensos nem decisões nestas matérias, mas não podemos fazer a leitura destas duas questões de forma isolada do contexto. Todo o texto das decisões é marcado por um apelo permanente à austeridade orçamental, nomeadamente no plano comunitário. E é neste quadro que aparecem estas duas referências em relação às quais não há consenso, mas haverá consenso relativamente à "contenção, rigor e austeridade orçamental no plano comunitário". Isto é meio caminho andado para a grande satisfação de uma delas, que é o 1.27%. Não poderá por um lado dizer-se que há rigor, austeridade e contenção orçamental ao nível comunitário e, simultaneamente, aumentar as despesas. O registo destas duas questões no texto final tem que ter a sua leitura e na minha opinião ela é negativa e complicada para as nossas intenções.


E o outro ponto agendado da cimeira, que era o debate sobre o emprego e a realização de uma primeira análise sobre os planos nacionais de emprego elaborados pelos Estados-membros, tal como decidido no Luxemburgo em 1997? Foi uma discussão virtual?

SR — Além do adiamento quanto ao essencial desta matéria, há alguns aspectos que são aqui reafirmados e que são extremamente negativos, como por exemplo, mais uma vez, se ligar a questão do emprego às reformas financeiras, à estabilidade financeira, à estabilidade preços, e aparecer esta ideia de Mercado Único como "força motriz para a criação de novos postos de trabalho". Isto tem sido afirmado continuamente e é feito outra vez nesta cimeira, em que há planos nacionais de emprego. O mercado único era o objectivo de 1992, estamos em 1998 e continuamos a afirmar o mesmo que se afirmava na altura. Por outro lado, no capítulo das conclusões fala-se de muita coisa, como a consolidação fiscal que vem a seguir à moeda única, fala-se de outros aspectos ligados às finanças, na flexibilidade, mas não há uma única vez que se fale do mercado social europeu, que tem sido uma coisa que tem aparecido quase como uma designação mítica - o modelo social europeu que é preciso preservar. Em contrapartida fala-se da reformulação dos sistemas fiscais e de segurança social. Tudo isto me parece extraordinariamente perigoso e, ainda por cima, resulta de se estar a dar uma imagem de que há alguma distensão nos problemas relacionados com o desemprego, porque a conjuntura económica não é negativa e o desemprego nos últimos tempos não se tem agravado como vinha a acontecer, está num patamar.


Esta questão dos Planos surge num contexto preciso, o segundo semestre de 1997, período de grande agitação social na Europa e pressão sobre os governos. Ela será metida na gaveta e retirada novamente quando a actual "distensão" termine?

SR — Acho que esta orientação dos Planos se vai manter e se vai continuar a falar nela. Vai ser uma coisa que vai aparecer ao lado do Pacto de Estabilidade, é tudo uma questão de retórica. Se calhar agora em vez de falarmos de "modelo social europeu" passamos a falar de "planos nacionais de emprego".

JM — Há aqui uma contradição: cada vez mais, as políticas económicas e macroeconómicas definem-se ao nível europeu e, entretanto, remete-se para o plano meramente nacional a resposta aos problemas do desemprego. Por outro lado é de registar, mais uma vez, porque não é apenas nesta Cimeira que isto se verifica, que não se vai minimamente às causas da situação. Tenta-se encontrar medidas de natureza cosmética para dar resposta a insatisfações dos cidadãos, das pessoas, dos trabalhadores, mas não se vai às causas da situação.

HN — De acrescentar que neste contexto de ausência de medidas e de presença de discurso, o discurso, apesar da curta memória das pessoas, começa a assumir características deploráveis. 1992 - "mercado único força motriz para a criação de emprego"; 1998 - repete-se o mesmo discurso com nuances pelo caminho. Entretanto, verifica-se que, de 1992 a 1998, o número de desempregados na Europa aumentou substancialmente, o patamar mantém-se em 18 milhões, e apesar de se insistir no discurso, na cassete, de que a prioridade é o emprego, o que se verifica é que apesar de um crescimento económico conjunturalmente elevado em termos médios, na conjuntura actual ele não é traduzido numa assinalável diminuição do desemprego, pelo contrário.


Um aspecto desta cimeira cuja discussão não estava inicialmente prevista prende-se com o chamado "futuro da Europa", ou seja a ênfase colocada na necessidade de levar a cabo um conjunto de ambiciosas reformas institucionais. Ratificar Amsterdão e avançar para novas reformas "que ficaram por fazer em Amsterdão". O que é que isto quer dizer?

JM — A primeira coisa que quer dizer é que estão preocupados com uma situação que já não podem esconder mais, que é os cidadãos estarem cada vez mais afastados das orientações comunitárias, tal como têm vindo a ser delineadas. Obviamente que, além disso, há interesses e há objectivos em que se insiste. O que é que se pretende com reformas institucionais? Não é nada de abstracto. É tão-só alterar a rotatividade das presidências, alterar a composição da Comissão Europeia com a eliminação da inclusão de representantes de todos os países, a redução das línguas de trabalho, a alteração da ponderação de votos, entre outras. É isto que se pretende.

HN — Eu penso que os aspectos que estão na reflexão de quem tem tanta pressa de fazer uma nova reforma do Tratado, para além de Amsterdão, são alterações que visam modificar a tomada de decisões por maioria, com nova ponderação de votos, passando para o domínio de decisões por maioria aquelas matérias que, actualmente, são objecto de decisão por unanimidade. Eu queria só alertar para a gravidade desta possibilidade com um exemplo, que diz respeito à Agenda 2000. Ainda que seja matéria - por exemplo o quadro financeiro, a reforma dos fundos estruturais, do fundo de coesão -, que está no domínio da unanimidade, o que permite uma capacidade negocial relevante a países mais pequenos como o nosso, se a reforma institucional for por este sentido, mais tarde, decisões deste género serão transferidas para o domínio das decisões por maioria. O que, com uma nova ponderação de votos no Conselho, acentuará o peso dos países mais fortes, mais populosos e tirará peso aos países mais pequenos e menos populosos, acentuando-se a componente federal da União.


No seu discurso dirigido aos eurodeputados, o primeiro ministro britânico fez a defesa da actual linha política da UE argumentando, entre outras coisas, com a necessidade de fazer face a um Mundo onde impera a globalização. Ao fim e ao cabo, o que ele estava a dizer era que não havia alternativa a este rumo...

JM — A globalização é uma realidade que está aí, o que não significa que se aceite passivamente essa mesma realidade e que não se tente inflectir, alterar, modificar as regras de jogo que servem essencialmente os interesses dos Estados Unidos. Daí que o problema não estará tanto na existência ou não de regras internacionais de comércio, o problema está em saber que regras e quem as determina. Esta é a questão. O problema central que se coloca é o de uma clara aceitação pela UE das regras impostas pelos Estados Unidos.

HN — É notável que as conclusões da Cimeira não façam referência a uma revisão das regras de funcionamento da Organização Mundial de Comércio (OMC). Nada é dito sobre a necessidade de estabelecer regras sociais, regras ambientais, que transformem esta organização mundial do comércio numa coisa menos neoliberal e numa coisa mais humana.


Esta Cimeira dedicou particular atenção às questões internacionais.

JM — Há vários aspectos de política externa que são tratados e há alguns de particular importância. É o caso do processo de paz no Médio-oriente, os ensaios nucleares na Índia e no Paquistão, o Kosovo e, naturalmente, o processo em Timor-Leste e na Indonésia. Em relação a Timor é positiva a existência de uma referência explícita, principalmente nos termos em que é feita, e o apelo que se faz à libertação dos presos políticos, nomeadamente de Xanana Gusmão. No entanto constata-se que, sobre a Indonésia, fala-se muito sobre as reformas económicas, mas pouco ou nada se diz sobre as necessárias mudanças políticas, nomeadamente sobre a necessidade de pôr termo à ditadura que ali ainda existe.

SR — O facto de haver uma referência a Timor é muito positivo e vai ao encontro daquilo porque lutamos há muitos anos, nomeadamente aqui no PE, que é uma tomada de posição explícita em relação à ocupação militar de Timor-Leste pela Indonésia. Mas depois aquilo que consta da declaração final, sendo positivo, não é satisfatório. Coloca-se a tónica do problema ainda e exclusivamente no plano dos direitos humanos e liberdades fundamentais sem a mínima referência ao direito à auto-determinação.


O que é que se pode contrapor a este processo de construção europeia, que não dá mostras de abrandar o passo?

JM — Muito se pode fazer e passa logo por um projecto de Europa substancialmente diferente daquele que tem vindo a ser concretizado. Não orientado numa perspectiva federal, mas marcado por uma perspectiva de cooperação entre Estados, potenciando as vantagens dessa mesma cooperação, uma Europa não liberal, uma Europa ligada aos problemas sociais e com capacidade de lhes dar resposta, a começar pelo problema do emprego. Uma Europa com reformas institucionais, que não aquelas que têm vindo a ser preconizadas, mas que permitam uma maior ligação dos cidadãos e dos trabalhadores às decisões, por exemplo através de uma maior articulação com os parlamentos nacionais. Uma Europa assente no privilégio à coesão económica e social efectivo e não apenas em palavras, naturalmente dando maior importância aos próprios fundos, e à manutenção e reforço do Fundo de Coesão. Que áreas tão sensíveis para países como o nosso, a habitação, a saúde, a educação possam ser privilegiadas também pelos fundos estruturais.

SR — Eu chamava a atenção para o facto de as Redes transeuropeias, os chamados 14 projectos prioritários, serem aqui tratados em duas linhas, enquanto em contrapartida, a promoção do espírito empresarial e da competitividade ocupam mais de uma página, o que revela o tipo de desequilíbrio que existe.

HN — Em relação às alternativas que propomos, queria avançar com dois exemplos concretos, que acabam por ser mais sentidos pelas pessoas. No quadro da Agenda 2000 foi tomada uma decisão de base que me parece algo complicada que tem a ver com a reforma da PAC. Foi considerado e aceite que as propostas da Comissão constituem uma base de trabalho, consensualizando-se esta ideia, o que abre um caminho para que se desenvolva a estratégia da Comissão em relação à reforma da PAC. Eu estranho muito que tenha sido assim, pois parece-me que este consenso não devia ter sido estabelecido tão facilmente, sobretudo porque retoma algumas perspectivas do passado. Em primeiro lugar porque deixa de fora do enquadramento da reforma da PAC muitos produtos agrícolas, designadamente aqueles que nos interessam do ponto de vista uma estratégia de desenvolvimento agrícola nacional, privilegiando-se sectores como a carne, leite e cereais, típicos dos países do Norte da Europa. Um segundo aspecto porque a proposta de reforma conhecida não corta com as orientações imprimidas em 1992. E a manutenção destas duas ideias e a sua assunção como base parece-me um consenso mal estabelecido e até estranho que o nosso Governo não tenha reagido. Isto é tanto mais significativo quando se sabe que Portugal é um contribuinte líquido da PAC apesar de ter a agricultura porventura mais atrasada da Europa.


«Avante!» Nº 1283 - 2.Julho.98