A operação anti-laboral do PS
O Governo PS prepara-se para minar
os pilares do direito do trabalho

Por Jerónimo de Sousa
Membro da Comissão Política


Durante a campanha nacional sob o lema "valorizar o trabalho e os trabalhadores, defender e concretizar direitos" o PCP alertou os trabalhadores para o perigo real do Governo PS querer alterar a legislação laboral em áreas sensíveis, designadamente do emprego, dos salários, das férias, das profissões, do trabalho nocturno, através da alteração dos conceitos, numa linha geral de flexibilização ou desregulamentação. Esta operação seria articulada com a ofensiva ao sistema de Segurança Social e com uma proposta de antecipação da idade da reforma.

Nas páginas do Avante! e designadamente na intervenção do secretário-geral do Partido, alertou-se para o facto de o Governo pretender aproveitar-se da polarização das atenções dos trabalhadores e da opinião pública em torno da campanha do referendo do passado Domingo, da realização da EXPO 98 e da aproximação do período de férias. Até o Campeonato do Mundo de Futebol caía como sopa no mel.
Alertámos para o truque do Governo querer concretizar em duas ou três fatias aquilo que junto constituiria um avultado pacote laboral, "adocicadas" com uma ou outra medida aceitável e avulsa.
E aí está! Após terem sido definidas e aprovadas em Conselho de Ministros as peças legislativas que constituirão a primeira "tranche", com destaque para o trabalho a tempo parcial, conceito de retribuição e alteração ao lay-off, nas vésperas da realização do referendo sobre a despenalização do aborto, mais precisamente no passado dia 26 de Junho, o Governo fez reunir o Conselho da Concertação e quer avançar com a segunda dose, que traz no bojo e à cabeça a alteração à lei das férias. Inevitavelmente, teve já os améns da UGT e as devidas bênçãos da CIP.
Sendo claro, desde o princípio, que o Governo tinha definido este tempo a régua e esquadro para reduzir o direito de participação das organizações de trabalhadores na legislação laboral a uma caricatura e a um mero formalismo (apesar da sua dignidade e consagração constitucional), restava saber como é que ia contornar a questão de, após a consulta pública, todas as propostas irem desaguar à Comissão Parlamentar do Trabalho de Segurança Social da Assembleia da República, reconstituindo o puzzle, ou se quisermos, o pacote laboral apresentado em fatias nestes meses de Maio, Junho e Julho.
E eis que o Governo descobriu a pólvora: vão umas quantas propostas para a Assembleia da República com publicação da respectiva separata, de obrigatória discussão pública seguida de discussão e votação no Plenário da Assembleia. Outras tantas, numa difusa operação de contrabando legislativo, seriam colocadas em discussão pública no Boletim de Trabalho e Emprego do Ministério do Trabalho, e ao fim de 30 dias o Governo, sem a chatice das vozes de protesto e denúncia dos deputados do PCP, aprovaria sossegadamente as propostas em Conselho de Ministros.
Magistral!!! Sim, porque em Julho e Agosto, quem é que vai ligar a um B.T.E. ou partir para as empresas, esclarecer e mobilizar os trabalhadores?
Tudo isto articulado com uma clara operação de silenciamento por parte da Comunicação Social. Por exemplo, na passada 6ª feira a CGTP anunciou uma importante declaração sobre este processo antes de entrar no Conselho de Concertação Social. Resultado: nem numa radiozinha local apareceu!
Talvez o Governo se engane. Esta manobra de contrabando legislativo marginal à Assembleia da República, sendo um ensaio que a resultar poderia ser experimentada nas outras duas "doses" seguintes, não passará sem a denúncia e a acção da CGTP e do movimento sindical neste mês de Julho, com a convicção da necessidade de partir para o esclarecimento dos trabalhadores e para o desenvolvimento da luta nos meses imediatos às férias.


Uma grave opção do Governo PS

Estas alterações à legislação laboral são sustentadas pela ideia de dar corpo às medidas resultantes do denominado Acordo de Concertação Estratégica aprovado em 1996. O Governo não explica como é que das centenas de medidas nele previstas e que atravessam vários Ministérios, logo foi escolher tão só aquelas que correspondem ao caderno reivindicativo das confederações patronais. E quer fazê-lo num quadro de crescimento económico, sem nenhum fundamento técnico, jurídico ou social, ou qualquer outra situação de instabilidade.
Apesar da forma torcida e "amanteigada" que perpassa pelo conjunto das propostas, quando se descodificam e despem da palha generalista, a sua essência e articulação revela três objectivos:
1º Visa a redução dos custos salariais, inclusive a redução de salários;
2º Propõe como linha geral a flexibilização, visando a desregulamentação dos vínculos;
3º Direcciona a ofensiva contra as futuras gerações de trabalhadores, diferindo no tempo a possibilidade de existência de uma geração sem direitos.
Isolando e descodificando as peças mais gravosas que envolvem a desregulamentação dos direitos destaque-se o trabalho a tempo parcial.
Com o objectivo de criar um estatuto de trabalhador com menos salário e com menos direitos, põe em causa e descaracteriza o Sábado e o Domingo como os dias normais e sociais de descanso semanal, visa criar o desempregado parcial, com subsídio parcial, o trabalhador com menos descontos para a Segurança Social mas com menos direito a subsídio de doença e menos pensão de reforma. Simultaneamente, por cada posto de trabalho a tempo parcial criado, a entidade patronal seria premiada com significativas isenções de impostos e descontos para a Segurança Social. Impondo a lei com carácter imperativo, o Governo quer anular as disposições sobre as matérias inscritas na Contratação Colectiva.
Na mesma linha, o Governo PS quer restringir o conceito de retribuição, subtraindo-lhe determinadas prestações como prémios de produtividade, empenhamento, assiduidade, etc.. Assim aumentaria o poder discricionário do patronato para distribuir prémios como bem entendesse sem penalização de violação do princípio da igualdade.
Seriam feitos menos descontos para a Segurança Social, já que limitaria a 20% a percentagem dos descontos na parte variável do salário. Haveria consequências negativas para os trabalhadores nos subsídios de férias e de Natal. Desvalorizar-se-ia a contratação colectiva.
Até uma "pequena" alteração ao lay-off visa uma redução radical da parte a suportar pelos patrões nas constituição do salário do trabalhador (50 para 30%, ou mesmo par 15% caso haja formação profissional, sobrando os encargos para a Segurança Social).
Estas três peças que integram a primeira dose convergem todas em dois pontos: menos descontos e mais encargos para a Segurança Social; menos direitos para os trabalhadores e mais privilégios para o patronato.
É claro que o Governo, num rasgo de esperteza, envolve estas três peças em três ou quatro outros projectos de diploma de alcance limitado e que funcionariam como uma espécie de papas e bolos para diluir o amargo da substância do trabalho a tempo parcial, da alteração do conceito de retribuição e da alteração ao lay-off. Se não ilude os trabalhadores, pelo menos sempre permite (como já aconteceu) ao jornal do Belmiro e aos principais canais de televisão, escamotear o essencial e propagandear o acessório.


O episódio seguinte

Ainda esta primeira dose não está em apreciação pública e já o Governo avança para a segunda, transformando o Conselho da Concertação em mero cartório notarial. No passado dia 26 de Junho anunciou que entre 13 e 27 de Julho quer a coisa despachada, particularmente a alteração à lei das férias. Em estilo cavaquista? Nem pensar! É uma alteração que até propõe 24 dias úteis de férias a quem não falhe um dia em cada ano e muito direccionada para quem entra agora no mercado de trabalho.
Só que submete o direito ao princípio da assiduidade, penalizando duplamente quem, por razões de falta de saúde e baixa por doença prolongada, não possa ir trabalhar!
Seguir-se-ão alterações ao conceito de trabalho nocturno, da profissão, aos contratos a prazo e, em jeito de remate, aprovar em lei ordinária o direito das associações patronais participarem na legislação laboral, direito que os deputados constituintes e a Constituição recusaram, dando prevalência às organizações dos trabalhadores.
No confronto de interesses entre os que, pelo seu emprego, pelo seu salário e pelos seus direitos, defendem a sua sobrevivência, física, moral e social, e os que, pela manutenção e crescimento do seu império económico querem acrescentar mais lucro e privilégios, a Constituição optou por estar do lado dos trabalhadores. O Governo PS, com estas propostas de alteração às leis laborais demarcando-se da opção constitucional que ajudou a escrever, põe-se do lado do capital.
Não ficará incólume, como não ficou quando resolveu há anos atrás abrir a brecha no edifício jurídico-laboral com a lei dos contratos a prazo, como não ficaram os executivos cavaquistas com os seus pacotes laborais.
Mas independentemente do juízo e julgamento político e eleitoral, a resposta dos trabalhadores e das suas organizações é para agora e para o futuro imediato. Resposta que tem de passar pelo esclarecimento dos trabalhadores e pelo alerta às novas gerações, que evolua para uma tomada de consciência maior, para a mobilização e para a luta como caminho determinante para influenciar os conteúdos e os desfechos deste pacote laboral às fatias.
Quanto ao PS, recordando um debate sobre a primeira proposta de alteração à lei dos despedimentos, por iniciativa da então AD, afirmava um deputado socialista, hoje Secretário de Estado: "a linha de fronteira entre a esquerda e a direita é muitas vezes delimitada entre os que defendem ou combatem os direitos sociais e laborais".
Eis uma questão de grande actualidade que, mais cedo que tarde, será clarificada!


«Avante!» Nº 1283 - 2.Julho.98