Os prós e os contras
da nova lei da televisão

Por António Filipe



A Assembleia da República aprovou recentemente uma nova lei da televisão, procedendo assim à revisão da lei que vigora desde 1990. A nova lei, cuja aprovação é pertinente tendo em conta a evolução do sector e a experiência dos últimos anos, melhora alguns aspectos da lei vigente, mas padece de deficiências e de soluções inadequadas que importa igualmente assinalar.

Na exposição de motivos que acompanhava a proposta de nova lei da televisão que o Governo apresentou à Assembleia da República, a necessidade de alterar o quadro legal da televisão em Portugal aparecia fundamentada sobretudo em razões tecnológicas. Afirmava-se que, com a evolução tecnológica do sector foi ultrapassada a limitação constituída pela exiguidade do espectro radioeléctrico, deixando de fazer sentido as restrições vigentes ao exercício da actividade de televisão. Sendo esta evolução um facto indiscutível, que abre as portas ao aparecimento de novos canais de televisão, designadamente de natureza temática, a transmitir através das redes de televisão por cabo, mal andaria porém o legislador se considerasse que o seu papel regulador neste sector se deve limitar à adaptação da lei às circunstâncias ditadas pela evolução tecnológica. Se é verdade que as novas possibilidades tecnológicas permitem o aparecimento de novos canais de televisão, tal facto não isenta o legislador de regular com rigor e responsabilidade o acesso à exploração desses canais e o cumprimento das obrigações legais por parte dos operadores.

A experiência dos oito anos decorridos desde a abertura da actividade de televisão à iniciativa privada exige uma séria reflexão. Tal abertura, aumentou sem dúvida a quantidade da programação disponível e introduziu novas dinâmicas - para o bem a para o mal - designadamente ao nível da informação, mas criou também novos e graves problemas. A escassez do mercado publicitário perante a duplicação de operadores e a concorrência desenfreada que se instalou, geraram uma programação essencialmente dirigida à captação de audiências a qualquer preço, assente na exploração do sensacionalismo, pouco escrupulosa quanto à salvaguarda dos direitos dos telespectadores e mesmo quanto à defesa de valores inerentes à própria dignidade humana. E ninguém ignora que estes últimos anos têm sido marcados por uma quase desregulamentação prática do exercício da actividade de televisão, que tem pactuado com exemplos fragrantes de violação da lei, como a divulgação de sondagens eleitorais no próprio dia das eleições ou a sobreposição de pretensos critérios jornalísticos a deveres legais de isenção e de respeito pelo pluralismo. Num quadro em que o serviço público de televisão, não obstante as responsabilidades acrescidas que lhe deviam caber, se viu confrontado com uma situação de instabilidade de quadros, de finanças e de meios, ditada sobretudo por políticas apostadas em viabilizar os operadores privados.


Aspectos positivos

A lei agora aprovada contém inegavelmente aspectos positivos. É regulado em termos genericamente correctos o acesso dos operadores à transmissão de acontecimentos que sejam objecto de interesse generalizado do público e cuja transmissão tenha sido adquirida em exclusivo por canais de acesso condicionado. É regulada, também em termos ajustados, a transmissão de extractos informativos por todos os operadores, relativamente a espectáculos e outros eventos públicos sobre os quais incidam direitos exclusivos. É estabelecida a obrigatoriedade da aprovação e publicação de um estatuto editorial por parte de todos os canais de televisão, sendo reforçados os direitos dos jornalistas, designadamente através dos seus conselhos de redacção. São reforçados os poderes do Conselho de Opinião da RTP, que passa a emitir parecer vinculativo sobre a nomeação e a destituição pelo Governo dos administradores da empresa. É regulado, em termos mais rigorosos e pormenorizados, o regime de exercício dos direitos de resposta, de rectificação e de réplica política. São aprovadas medidas de conservação do património audiovisual de interesse público e de garantia da sua acessibilidade. São ainda consagradas medidas destinadas a assegurar a existência de programação acessível à população surda, designadamente através da utilização da linguagem gestual portuguesa.

Outros aspectos, conheceram sensível melhoramento durante o debate na especialidade, com a aprovação de propostas de alteração apresentadas pelo PCP. Foi assim, por exemplo, que foi abandonada a proposta governamental de renovação automática da concessão aos actuais operadores, ficando estabelecida a regra da realização de novo concurso terminado que seja o prazo das actuais concessões; foi abandonada a proposta de deduzir à indemnização compensatória do Estado, os lucros obtidos pela empresa concessionária de serviço público na exploração de negócios conexos com a sua actividade, tendo sido aprovada a proposta do PCP que permite a utilização desses lucros na renovação tecnológica da empresa; e foi aumentado o tempo de antena anual reservado aos sindicatos, que se encontrava manifestamente desajustado.

Porém, em questões de inegável importância, as soluções consagradas na nova lei são, no mínimo, inadequadas. Vejamos três dessas questões, porventura as mais significativas.


Soluções inadequadas

A primeira questão, diz respeito à possibilidade de participações múltiplas e cruzadas em operadores de televisão e à completa ausência de limitações à penetração do capital estrangeiro. A lei de 1990 proibia qualquer pessoa singular ou colectiva de deter, directa ou indirectamente, participações superiores a 25% do capital social de qualquer operador de televisão, e de participar no capital de mais do que um operador. Por outro lado, o conjunto de participações do capital estrangeiro não pode exceder 15% do capital de cada operador. A lei agora aprovada elimina todas as restrições desta natureza, escancarando as portas a uma maior concentração da televisão nas mãos de uns poucos grupos económicos. Se já são hoje inteiramente justificadas as preocupações com as consequências do processo de concentração dos meios da comunicação social nas mãos de uns poucos grupos económicos, a futura lei da televisão só contribuirá para as agravar. Os mecanismos de transparência da titularidade das participações sociais nos operadores de televisão que a nova lei estabelece são em si mesmo positivos, mas limitar-se-ão a tornar um pouco mais perceptível uma realidade em si mesmo negativa.
Uma segunda questão diz respeito às quotas de produção nacional e em língua portuguesa, relativamente às quais, a lei retira com uma mão o que oferece com a outra. Os operadores de televisão ficam obrigados a dedicar 15% do tempo das suas emissões à difusão de programas criativos de produção originária em língua portuguesa. Até aqui tudo bem. Só que, ao não fazer qualquer distinção quanto ao tipo de programas, a lei permite que em tal conceito sejam incluídos concursos ou "talk-shows" cuja utilidade se esgota numa única transmissão. E por outro lado, a própria lei só considera exigível a transmissão dessa quota de 15%, três anos depois do Estado assegurar medidas de incentivo à produção audiovisual de ficção, documentário e animação em língua portuguesa. Isto é: A própria lei prevê os mecanismos que a tornarão letra morta.
Uma última, mas decisiva questão, diz respeito ao tão vilipendiado serviço público de televisão. Num quadro de crescente domínio do poder económico sobre a comunicação social, o serviço público de televisão, como espaço livre da pressão das audiências e da pressão do poder económico, é um instrumento decisivo de defesa dos cidadãos e de salvaguarda da qualidade da programação televisiva, cuja viabilidade, estabilidade e democraticidade, têm de ser asseguradas.
A política dos Governos PSD, orientada para a viabilização dos operadores privados de televisão à custa do serviço público, causou danos irreparáveis à RTP. Desde logo, esbulhando-a de todo o vasto património que constituía a sua rede própria de transmissão e difusão de sinal, hoje integrada na Portugal Telecom, e por cuja utilização a RTP paga, sem que se perceba com que critério, mais do que qualquer outro operador. Depois, retirando-lhe fontes próprias de receita sem qualquer contrapartida e impondo-lhe uma gestão ruinosa, destinada a pôr em causa, a prazo, a sua própria viabilidade. Aqueles que hoje exigem a liquidação da RTP, lamentando os seus custos para os contribuintes, são os mesmos que ao longo dos anos em que foram Governo, se encarregaram de a desmantelar, desprestigiar e degradar, sem qualquer respeito para com o dinheiro dos contribuintes.

Porém, não obstante as intenções de defesa do serviço público sempre reivindicadas pelo actual Governo, as soluções agora aprovadas para o serviço público estão longe de ser as melhores. Desaparece a referência expressa na lei à existência de dois canais generalistas de serviço público, o que não representando só por si a possibilidade de alienação do actual segundo canal da RTP, não deixa de ser um mau sinal em termos legais. E por outro lado, passa a ter consagração legal, a limitação imposta ao serviço público quanto à inserção de publicidade, medida tomada já pelo actual Governo e assumida como uma forma indirecta de subsídio aos operadores privados que custa por ano à RTP cerca de um milhão de contos. Estranha forma de defesa do serviço público.


«Avante!» Nº 1283 - 2.Julho.98