"Portugal 2000 - Debates para uma política de esquerda"
A participação dos cidadãos,
valor inseparável da democracia



Tal como noticiámos na ultima edição do Avante!, teve lugar na noite de 19 de Junho, em Setúbal, um debate sob este tema que contou com as intervenções do Eng. Fernando Nunes da Silva, Professor do Instituto Superior Técnico, Luís Sá, deputado e membro da Comissão Política do CC do PCP, Manuel Carvalho da Silva, coordenador da CGTP-IN, e Óscar Mascarenhas, Presidente do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, estando ainda na mesa Jorge Pires, da Comissão Política.
Realizada na Sociedade Musical Capricho Setubalense e dirigida por Luís Guerreiro, sociólogo e membro da DORS do PCP, a iniciativa atraiu mais de 150 pessoas e suscitou o pedido de palavra de um público tão vasto e diversificado que a prolongou para além da uma hora da manhã.
Numa noite de muito calor e com os festejos populares a rondar a porta, participação pois não faltou!


"Disponibilidade para aprender com os outros, aprender com a vida, segundo a melhor tradição marxista" - assim caracterizou Luís Sá o sentido da iniciativa do PCP. Hoje "com o propósito muito claro de abertura e diálogo e de contribuir para a construção uma alternativa de esquerda".
Evocando os 150 anos do "Manifesto do Partido Comunista", Luís Sá falou da primeira Associação Internacional de Trabalhadores, dirigida por Marx, e que englobava, por exemplo, os trabalhistas ingleses, os lassalianos alemães, os socialistas franceses, num momento da história do movimento operário em que a luta em torno do horário de trabalho e de tantos outros combates aproximou correntes e pontos de vista diferenciados.
"O pior que poderia acontecer a um partido que teve e tem um papel histórico insubstituível no nosso país seria a arrogância e pensar-se que nos sindicatos, nas autarquias e nas instituições onde temos poder ou influência determinante não nos é exigido levar mais além as nossa experiências". A esta convicção, o dirigente comunista ligou a denúncia da tentativa do Poder Central de limitar o Poder Local à mera reprodução de procedimentos burocráticos, não deixando tempo aos eleitos autárquicos para o "estimulo de formas de intervenção e participação populares alternativas, que marquem claramente a distinção de uma gestão democrática e de esquerda".
Contudo, a análise crítica e autocrítica dos nosso procedimentos "não deve permitir o esquecimento de nosso património de trabalho inovador, ligado às massas, nem o conjunto de batalhas que vencemos continuamente para a melhoria das condições de vida das populações", referiu. "Vencer, às vezes, é um grande problema. A ideia de que o vencedor leva tudo corporiza-se, à direita, quando da resistência das populações e dos trabalhadores se diz que são forças de bloqueio, mas na esquerda e no exercício das funções mais nobre dos comunistas, o que prevalece é o respeito pelas várias partes que correspondem a uma comunidade, envolvendo o cidadão e as pessoas antes da decisão final".
Uma dificuldade porém a vencer, já noutro nível, é o de demonstrar ao cidadão que a simples participação numa reunião deste tipo pode e deve ser visto com uma forma ou possível forma de influenciar o poder político, seja a que nível for. O que pressupõe, segundo Luís Sá, a nossa compreensão de que "o combate as dificuldades objectivas da esquerda, em Portugal, na Europa e no Mundo, passa por ganhar as pessoas para o activismo e a sua organização, quando propulsor das ideias e do valor cada um".

"O maior perigo seria o de perdermos a nossa capacidade de mudar", ou seja de reagirmos para trabalhar mais e melhor à luz de novas análises que se impõem, assim começou por dizer o Eng. Nunes da Silva.
Valorizando a iniciativa do PCP e o tipo de debate que é proposto num quadro de acrescidas dificuldades, dada "a situação em que as forças do dito centro são muito fortes, têm uma muito íntima ligação ao poder económico como nunca existiu em Portugal", Nunes da Silva atreveu-se (palavras suas) a dizer que "neste momento esta ligação é mais forte do que no tempo de Salazar, que apesar de tudo tinha uma mentalidade rural e como tal era avesso a um certo tipo de patrões da industria!".
Não sem precisar que não considerava tal facto "uma virtude" em si, a sua tese assentou na constatação de que nunca como nos nossos dias se assistiu "ao à vontade com que a grande finança e o grande capital entram nos gabinetes ministeriais".
Contra este estado de coisas, Nunes da Silva defendeu que "o aprofundamento da participação das pessoas e da democracia não se pode fazer apenas na dicotomia democracia representativa/democracia participativa. Temos também que intervir de tal forma em que a democracia representativa alargue a pouco e pouco o espaço de participação no interior dos seus próprios mecanismos de poder".
Como exemplo, citou as relações na esfera do poder autárquico entre a Câmara e Assembleia Municipal, convicto de que nesta deveria de haver a possibilidade, entre outras, da apresentação de moções construtivas, das quais dependesse inclusivamente a manutenção ou não do executivo municipal. "Apesar de ser ainda um orgão representativo, é apesar de tudo aquele que ainda está mais próximo dos cidadãos e portanto deveria de ter condições de apresentar, para além do sim ou não, propostas de alteração, emendas, assim como chamar à discussão em comissões especializadas, como na Assembleia da República, os temas mais prementes do município".
Para este especialista no planeamento, o autarca como outros eleitos não poucas vezes "estão fora do resgate do voto", recordando "o Presidente de Câmara que foi eleito e reeleito à força de oferecer televisores para de seguida esquecer todas as suas promessas".
"Ora no poder local, na discussão das coisas muito concretas, mais fácil se separa o trigo do joio" - rematou Nunes da Silva.

A revalorização do trabalho foi apresentada por Manuel Carvalho da Silva como elemento essencial na reflexão e práticas de hoje, à esquerda. Para ele, "o trabalho é referência e informador de conteúdos nas estruturas e na acção social, normativo e regulamentador das instituições".
Neste sentido, "cabe efectivamente perguntar que relação tem com este factor estrutural e estruturante o chamado homem de êxito apresentado por aí na nossa sociedade?" Muita pouca, disse o orador, para defender peremptoriamente que "é isto que tem de ser alterado!".
"Tem de haver inflexões de amplitude, profundeza e diversidade muito grandes, nas várias vertentes das remunerações, nas condições em que é prestado o trabalho, na existência de carreiras profissionais, na dignificação das actividades produtivas, no contributo que o trabalho dá para a integração social e a realização da cidadania, ou seja, impõe-se um salto qualitativo distancie esta apreciação do "êxitos" à margem do próprio trabalho, cada vez mais aumentando a exploração dos que trabalham na razão directa do artifício que os exclui".
O coordenador da CGTP-IN abordou de seguida a questão da importância da participação dos trabalhadores nos processos produtivos com uma maior exigência de informação e consulta - aliás consagradas em muitos textos legislativos e por isso mesmo, em muitos casos, apenas carentes de serem, pura e simplesmente, "postas em actividade". Para todos os que se situam à esquerda, "com convicções de que resultam, pelo nosso empenho, consequências", a luta por estes direitos têm entretanto de "partir dos trabalhadores que temos hoje e do trabalho que têm, e não de situações imaginárias".
Ao longo da sua explanação, Carvalho da Silva elegeu a contratação colectiva como elemento fundamental da actividade sindical, direito incontornável e garante de uma participação que fortifica a cidadania de todos e de cada um, e por isso mesmo, "objecto de um dos maiores ataques com que os trabalhadores e as suas estruturas sindicais e representativas se defrontam".

Óscar Mascarenhas, começou por questionar o modelo da iniciativa do PCP. Sustentou que "participar é meter as mãos na massa, é mexer nas coisas : não faz sentido dizer que alguma coisa foi participada se as outras pessoas que não os titulares da execução não mexeram nas coisas e não as transformaram". Assim, "há tanta coisa e tanto discurso, noções como solidariedade, distribuição equitativa, medidas e reformas, muito semelhantes na forma, de que a direita soube apropriar-se no discurso da esquerda - esta esquerda da qual, em primeiro lugar, tínhamos a noção de ser ela a detentora do social, enquanto a direita era a proprietária, aquela que tratava de si própria e de nada mais".
"Neste momento, as coisas já são diferentes, a nível do discurso a direita cativa largos sectores que incluem o proletariado como sua base eleitoral e muitas vezes base social de apoio, por alguma razão : não lhes diz que votem nela para que ela as explore, engana com iguais argumentos".
Daqui a necessidade de, estabelecendo a diferença entre esquerda e direita, conhecer e sentir "a forma como uma e outra exercem o poder".
"A direita tem um mandato - a esquerda, bem ao contrário, está aflita todos os dias com o poder que tem, um poder para devolver às pessoas".
Desenvolvendo a sua ideia e pensando que "para cada acto a esquerda quer o consenso, o qual requer a participação de todos, a agitação para a mobilização popular, o ganhar os cidadãos para a partilha", o jornalista chamou ao debate uma outra premissa, "coisa essencial para tudo isto : a esquerda, nós, os da esquerda, temos de dar o exemplo!"
"Antes do 25 de Abril - lançou -, como éramos nós, os militantes da coisa boa que foi a libertação? Éramos terríveis espectadores de nós próprios, e dizíamos que não podíamos dar azo que alguém aproveitasse uma fraqueza ou um erro nossos para depois nos apontar o dedo e igualar-nos aos outros".
Voltando ao momento presente e à sua condição de jornalista, Óscar Mascarenhas não quis deixar de fazer algum humor com aquilo a que chamou um problema da comunicação social e da informação do nosso país, protagonizado nos factos políticos do momento : "até já é possível fazer-se um discurso político, como tem feito Marcelo Rebelo de Sousa, fazendo má catadura a um grupo económico!".


«Avante!» Nº 1283 - 2.Julho.98