ACTUAL - I

Para a acta



Não é que sejamos santos, mas acredite-se que o que vem a seguir não é uma retaliação ditada pelo ressentimento face à vitória tangencial do «não» mas apenas a incontida vontade de ditar para a acta deste referendo coisas que não devem ficar esquecidas.


Assim, não deve ser esquecido que no «Expresso» saído no dia de reflexão (com a data falsa do dia anterior), Fernando Madrinha, subdirector do jornal, ainda conseguia escrever que «ajuizar sobre o que há-de fazer um casal, ou. como acontece na maior parte dos casos, uma mulher só e aflita, acerca de uma gravidez indesejada - eis o último dos assuntos que devia ser chamado à praça pública para debate, reflexão e decisão política com uma cruzinha no rectângulo de papel».
E também não deve ser esquecido que é como fruto desta mesma estupidez ou má-fé que procurou fazer crer que no passado domingo íamos ajuizar sobre o que «há-de fazer» um «casal» ou «uma mulher», que a revista do «Expresso» (que notavelmente conseguiu ignorar qualquer cartaz ou imagem de tempo de antena do PCP) era em grande parte dedicada a questões de maternidade e até trazia uma página com uma lista para contactos com serviços de ajuda à gravidez, coisa muito inocente em véspera do referendo.

Para já não falar nas centenas de vezes que jornalistas ( muitos certamente apoiantes do sim) identificaram descuidadamente o referendo como sendo «o referendo sobre o aborto», não deve sobretudo ser esquecido que, nos três canais de televisão, os espaços noticiosos relativos à campanha do referendo foram a maior parte das vezes absurdamente identificados ou assinalados com slides, grafismos ou imagens de barrigas com oito meses de gravidez, de amálgamas de fetos ou de ecografias tremelicantes, tudo coincidindo objectivamente com a simbologia da campanha do não.
Como imperecível exemplo do que é a desonestidade e a falta de escrúpulos em política, não devem ser esquecidas as clamorosas piruetas argumentativas de Marcelo Rebelo de Sousa e de Paulo Portas em torno das consequências da abstenção e do carácter não vinculativo do referendo, consoante falavam quando previam que o sim ganhasse ou quando falavam no momento em que já era certa a vitória do não.

Igualmente não deve ser esquecido que não faltaram bispos, prelados e personalidades políticas que, no próprio dia da votação, violaram o dever de contenção que a lei e uma elementar cultura democrática impõem até ao fecho das urnas e que o fizeram com impacto nacional graças a uma invertebrada cumplicidade de rádios e televisões, sendo indispensável acrescentar que quase toda a emissão do serviço público de televisão, entre as 18 e as 19 horas, constituiu deste ponto de vista um verdadeiro caso de polícia.
E já agora que ninguém esqueça que, na segunda-feira, o «Público», em cinco textos dedicados a cinco «caras da campanha» pelo sim ( Sousa Pinto, Odete Santos, Carlos Carvalhas, Helena Roseta e Albino Aroso) só a duas «caras» - Odete Santos e Carlos Carvalhas - aplicou a expressão «derrota» ( «pesada» e «amarga» ).
Mas paciência, talvez um dia o «Público» descubra que o PCP, que teve 8,6% nas últimas legislativas, lutou honrosamente por uma causa que recebeu 49% dos votos expressos. — Vítor Dias


«Avante!» Nº 1283 - 2.Julho.98