ACTUAL - II

Que fazer com este voto?


Tratada quantas vezes ao longo da História como símbolo do amor e da beleza, outras tantas como fonte de luxúria e mal do mundo, o certo é que a mulher tem no seu ventre o dom da fertilidade, nos seios a possibilidade de alimentar os filhos durante os primeiros tempos de vida, no coração a enorme capacidade de os acolher, entender e amar.
Mas a condição da mulher, levada a referendo no último fim de semana, foi maltratada por uma velha e impositiva cultura, preconceituosa e injusta. Não só a sua liberdade, também a sua dignidade foi a votos. Por uma unha negra perdeu a votação. Triste vitória a do «Não» que nada mais significa. Senão, manter aberta essa gravissíma chaga social que é o aborto clandestino de massas.
E agora?
Nestes dias seguintes à votação - dias, meses, anos? - em cada um deles se ouvirá o clamor das muitas mulheres condenadas à angústia, vergonha, medo de maus tratos, a juntar-se à enorme e irremediável pena de perder a criança que não pode ter. Continua assim uma enorme e antiquíssima repressão sobre a mulher. Indigna da nossa história mais recente


E, no entanto, o problema esteve à beira da resolução: uma lei de despenalização da mulher estava aprovada na Assembleia da República, ao fim de muitos anos de esforços pela nossa parte. Este referendo não só não era necessário como constitui uma autêntica sabotagem montada pela direcção do PSD com prestimosa acolitagem dos dirigentes do PS.
Mas este referendo - emblemático a todos os títulos, até por ser o primeiro - acabou por ser ele próprio referendado pelo soar da enorme trombeta que por vezes dita a vontade popular. E foi massivamente rejeitado - por abstenção. Com essa esmagadora abstenção o povo votante devolveu à Assembleia da República a responsabilidade que lhe cabe de legislar. Para isso a elegeu.
Ser responsável é saber responder. Penoso é que, na actual composição, a Assembleia demonstre não estar à altura das suas responsabilidades.


Mais de 1 milhão e 300 mil votos reclamaram no passado domingo «a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher nas primeiras 10 semanas».
Que fazer com esses votos?
Não foram votos perdidos. Cada um deles fica como uma pedra branca a marcar o caminho desta velhissíma luta pelo respeito da mulher e da sua dignidade. E nada ficará como dantes.
Como disse Marguerite Yourcenar num dos seus mais belos contos, «o tempo é um grande escultor». Com todas as amarguras e os sofrimentos impostos pelo adiamento da possível e concreta solução deste problema, ele acabará por ter de ser resolvido. Mas, para isso, é necessário não baixar os braços, não calar as vozes, é preciso continuar a reiventar em cada etapa as formas desta indispensável luta pela justiça, neste gravíssimo problema humano. Esse é o nosso compromisso. Alargável a todos os que conosco participaram nesta batalha política, social e cultural.


A propósito da relação homem-mulher, Engels dizia que o amor não foi inventado, é uma longa elaboração dos seres humanos no caminho da felicidade. E descobriu que entre os aborígenes sul-americanos havia uma expressão portuguesa, «filhos do amor», para designar crianças nascidas da paixão entre um português e uma india. Nesta época de evocação dos oceanos bom seria podermos legislativamente navegar para todos serem filhos do amor. — Aurélio Santos


«Avante!» Nº 1283 - 2.Julho.98