MOTES E VOLTAS
Hipermercados, aguadeiros e outras coisas mais
Anda aí uma febre de privatizações que
desperta a atenção mesmo dos mais distraídos .
Já não se trata apenas de empresas estratégicas, vendidas a
retalho na praça pública, para realizar receitas úteis aos
critérios da moeda única.
Os jornais vão publicando interessantes notícias sobre diversas
privatizações em preparação, designadamente dos serviços
prisionais e do serviço de cobrança das contribuições
e impostos, acompanhadas de comentários dos ministérios da
tutela do género "não confirmo nem desminto".
Embalados na onda, os partidos da embrionária AD já reclamam a
privatização da Caixa Geral de Depósitos o maior grupo
financeiro português arreliadoramente ainda nas mãos do Estado
, e das empresas de serviço público de comunicação RTP
e RDP.
O Governo vai gerindo esta longa e devastadora capitulação com
sermões onde abundam referências aos interesses dos
"mercados", pontuados de belas palavras como diálogo e
solidariedade, e filáucias de "modernidade e
eficácia".
Consoante os auditórios, conhecidos apoiantes do partido do
Governo vão apostrofando, com maior ou menor vigor, a
subordinação do poder político ao poder económico, a
teocracia do dinheiro ou a teologia dos mercados, ao gosto do
momento, como se não tivessem nada a ver com isso.
No geral, são conceitos que a esquerda há muitos anos definiu e
defende. Mas, no concreto, nem uma palavra, nem uma medida, nem
um reparo às privatizações e às benesses dos especuladores,
nem ao menos uma declaração de intenções, nem uma referência
à injusta dívida do Terceiro Mundo, nem uma alusão sequer à
taxa Tobin (taxa sobre as operações bolsistas), apesar do seu
limitado alcance.
Falam do neoliberalismo, como fenómeno global e não como fonte
inspiradora da política seguida pelo Governo do nosso País,
aplaudida pela oposição de direita, que por vezes acha pouco e
mal e tem ataques de ciúmes.
Procurando não mexer formalmente nas responsabilidades sociais
do Estado tal como são estipuladas na Constituição, o que
despertaria a consciência democrática, o governo vai colocando
o ensino privado a par do público, com prejuízo deste,
avançando com arquipélagos privados no sistema de saúde e, na
segurança social, cautelosa mas determinadamente, procura
remeter o Estado para um papel meramente assistencial. No futuro,
e com tal concepção de Estado, poderão faltar os direitos
sociais existentes mas não faltará a mão da caridade, lê-se
nas entrelinhas.
Os preâmbulos simpáticos
A cultura
empresarial vai avançando nos serviços públicos a coberto de
diplomas com laivos de modernidade e os mais pios propósitos, e
uma retórica, nos respectivos preâmbulos, simpática à
esquerda, com extensas e enfáticas referências ao insucesso, à
exclusão, à pobreza, que pretensamente combatem.
Por este caminho, se não for travado, poderá consumar-se o
velho projecto ultra-liberal de reduzir o Estado ao papel de
administrador da justiça (justiça de classe, é claro), agente
fiscal e garante da ordem pública do resto a iniciativa
privada se encarregaria...
Nesta lenta desconstrução do Estado democrático tal como a
Constituição o define, neste PREC ao contrário processo
de regressões em curso por vezes acontecem os arrufos
e estala o verniz. Veja-se o conhecido patrão dos hipermercados,
em conúbio de facilidades com o Governo, atirar-se, com a
soberba que lhe dão as dezenas de milhões de contos de que é
dono, ao chefe de um partido político.
Talvez fique por aqui esta guerra de palavras, para além do
inquérito parlamentar entretanto decidido. Mas o que ela dá
sinal é das águas turvas onde navega esta crescente
promiscuidade entre interesse público e privado.
Um Estado parasitado
Curiosamente, o
discurso recorrente da direita tem sido, há anos, a
"libertação da sociedade civil" ou, "menos
Estado melhor Estado". Traduzindo "menos
Estado" no País e para os cidadãos, "melhor
Estado" para os interesses privados, é o que, na verdade,
querem dizer.
Os que mais criticam a dimensão do Estado, são precisamente os
que mais recorrem ao financiamento público e parasitam o
próprio Estado.
Não está em causa a iniciativa privada, legítima, necessária
e que tem o seu espaço de actividade e expansão.
O que está em causa é uma perversão que tem crescido nos
últimos anos nas relações entre os domínios público e
privado, em que as responsabilidades do Estado, a qualidade dos
serviços prestados, os direitos dos trabalhadores tendem a ser
sacrificados ao negocismo, ao critério do lucro fácil e
rápido, ao enriquecimento súbito de uma minoria.
Como sintoma deste aluvião difuso onde se perde a fronteira
entre interesse público e privado, aí está a prática, já
antiga, mas acentuada nos últimos anos, dos ministros e
secretários transitarem directamente do Governo para as
administrações das grandes empresas ou como consultores dos
grupos financeiros.
Este encavalitamento do financiamento público pela
"sociedade civil", formada por ousados e bem
relacionados empresários, lembra-me sempre a carta do aguadeiro
galego que mestre Aquilino Ribeiro nos contou num dos seus
livros. Escrevendo de Lisboa, para onde tinha vindo acarretar
água, aos seus parentes na Galiza, dizia o aguadeiro: "a
terra é boa e a gente tola, a água é deles e nós
vendemos-lha"... Jorge Sarabando