TVisto

O medo continua

Por Correia da Fonseca


«É verdade que Lénine nasceu da Lua e das estrelas?» «É verdade!» «É verdade que as primeiras palavras que pronunciou foram Pão e Liberdade?» «É verdade!» «É verdade que o braço direito de Lénine é de ouro do ombro ao cotovelo?» «É verdade!» Estas palavras, solenemente pronunciadas em russo com sobreposta tradução, foram as primeiras do telefilme transmitido pela TV2, «o canal cultural», no passado domingo. Iniciava-se assim, em clima misto de idiotia e misticismo, o documentário intitulado «O Culto de Lénine», produção do britânico Channel Four (que se tem mostrado especialista num certo tipo de sovietologia e actividades afins), integrado na rubrica «Vidas do Século», transmitida depois da meia-noite aparentemente para eventual proveito dos telespectadores dispostos a trocarem umas horas de sono pela aquisição de dados e informações que possam acrescentar-lhes o património cultural.
No caso de «O Culto de Lénine», porém, o que os telespectadores encontraram foi um caldo de nevoeiro e veneno como antes poucas vezes se vira. O objectivo era, visivelmente, injectar-lhes nas cabecinhas, mais uma vez, a versão de que as convicções comunistas não têm nada de racional e nítido como os próprios sustentam, mas sim, muito pelo contrário, decorrem de uma religiosidade não apenas primária mas também supinamente tola, como o excerto inicial que atrás se refere claramente indicia. O resto do telefilme, de resto, embora nem sempre com a mesma exemplaridade, sempre apontava no mesmo sentido e, talvez para mais reforçado efeito, ele próprio era baralhado e trôpego, como porventura convém a quem quer cobrir um dado tema com o manto diáfano da cretinice.


Os cheiros

Momentos houve em que a tarefa envenenadora pareceu desvairar e deslizou para o atoleiro daquela incredibilidade que, de tanto o ser, se desvaloriza pelo ridículo. Por exemplo, quando um suposto comunista «arrependido» acusa, compungindo, que «o amor a Lénine foi mau para a família» e «corrompeu o amor pelos pais e avós». Isto, não desta vez porque os comunistas soviéticos forçassem as populações e praticarem o amor livre ou a denunciarem os desvios ideológicos de direita das «babutchas», mas sim porque, em confronto com os proclamados méritos pessoais de Lénine, pais e avós saíam com uma imagem diminuída. Noutros momentos, porém o documentário enveredava por métodos não tão irrisórios. A estratégica confusão entre documentários autênticos, contemporâneos de Lénine, e cenas de filmes de propaganda anti-soviética permitia, designadamente, que «víssemos Lénine» dar por telefone com ar feroz, ordens de execução de adversários políticos: «Matem-nos imediatamente!», disparava o actor habilmente transformado em sósia de Lénine. Depois, porém, vinha um ex-soviético real depor livremente perante as câmaras: «Agora é tudo muito claro:ele apenas queria poder, morte e violência!» Diante disto, o telespectador só pode dar graças ao Channel Four, à TV2 e, naturalmente, à Senhora que tanto recomendou que se rezasse pela conversão da Rússia, pela preciosa lição de História comtemporânea que acaba de receber. Depois disto, o menos que se pode esperar é que, no próximo acto eleitoral ou referendário, o cidadão/telespectador se lembre deste telefilme no momento de votar.
A dado passo, ouviu-se que «na crença comunista, Marx é Deus e Lénine é o filho de Deus». A olhos serenos, esta parece decerto ser uma enormidade imbatível, mas o caso é que o telefilme abundou em falsificações de uma desvergonha e de uma torpeza impressionantes pela dimensão. A par disto, as imagens deleitavam-se sadicamente com sequências da demolição de estátuas de Lénine. Não certamente apenas para prazer dos autores, mas também para gravar no espírito do público a certeza de que o comunismo morreu.
Contudo, o que cheira pessimamente neste como noutros telefilmes que com ele convergem não é o cadáver do comunismo defunto, mas sim as mãos que amassaram tantas infâmias no mais total desprezo pelo público que manifestamente consideram de todo acéfalo. O que também cheira é o ódio com que esta forma de anticomunismo sem nenhuns princípios mas com óbvios fins vem mentir e viciar, instalado na certeza cobarde de que não será permitida a passagem pela mesma via do menor desmentido. E cheira, finalmente, o medo, o enorme medo que persiste e que se revela em cada baixeza cometida contra Lénine, contra a História, contra os comunistas passados e presentes. Essa gente tem medo, e pelo medo continua a disparar sobre os alegados cadáveres.


«Avante!» Nº 1283 - 2.Julho.98