EDITORIAL

A ordem natural das coisas


Toneladas de peixes mortos, no Tejo, em Vila Franca de Xira: lembram-se?: foi em Outubro de 1990 e durante vários dias essa foi a grande notícia do dia. Especialmente a partir do momento em que o então secretário de Estado do Ambiente, Macário Correia, atribuiu as causas da ocorrência a uma operação de desratização promovida pela Câmara de maioria CDU... Televisão, rádios e jornais soltavam pungentes títulos de dor envenenada: "Raticida matou cem toneladas de peixe no Tejo" - "Uma câmara na berlinda" (Público de 20/10/90); "Câmara de Vila Franca acusada pela morte de peixes no Tejo" (Diário de Notícias de 20/10/90) - e seguiam-se longas e pormenorizadas notícias nas quais os esclarecimentos e desmentidos da Câmara apareciam submersos por uma vaga de "provas": "Macário Correia (...) considera que a Câmara é o principal responsável pela morte do peixe no Tejo"; as acusações à Câmara "são inquestionáveis e fundamentam-se em análises científicas"; Macário está "na posse de dados científicos que justificam as acusações que faz".

Entretanto, em meia dúzia de linhas, os leitores eram informados que a Câmara qualificava de "irresponsáveis" as afirmações de Macário. Mas logo o fogoso Macário desembainhava a espada e golpeava os autarcas da CDU por estarem a "fazer carreirismo político"; e acrescentava, bem humorado: "Os peixes não morrem por divergências políticas ou ideológicas, mas sim por poluição química com implicações biológicas". A imagem de uma CDU culpada impunha-se, assim, à má fila, na memória das pessoas.
Para ajudar a festa, o DN de 23/10 "confirmou" tudo: "Raticidas causaram a morte do peixe no Tejo" ... - a "confirmação" fora colhida de "um relatório do INIP ao qual o DN teve acesso"... e, em 25/10, Macário assegurava que esse relatório iria ser "publicado dentro de alguns dias" e, naturalmente, esclareceria tudo. Os comentários dos autarcas da CDU eram, para Macário, "propaganda política" com o objectivo de impedir "a análise e discussão dos problemas". Dramático, acusava o então Presidente da Câmara de "fazer propaganda pessoal aproveitando a morte de toneladas de peixe no Tejo". Responde-lhe Daniel Branco: "Macário Correia está a tentar atirar lama para cima dos outros mas vai ter pela frente um osso duro de roer". E tinha.

Dois anos depois, em 1992, ainda Macário estrebuchava: dizia-se na posse de "argumentos complementares" que apresentaria "na altura própria" e que confirmariam as suas acusações à Câmara. E no final desse ano, por ocasião de uma visita a Vila Franca , garantiu todo pimpão: "Não retiro uma vírgula ao que disse". Claro que retirou. Retirou mesmo as vírgulas todas, e os pontos todos e as palavras todas - como adiante veremos.
Em 26.10.90 a Câmara instaurou-lhe um processo por "afirmações caluniosas". O processo só não avançou porque o caluniador, então deputado, aproveitou-se da imunidade parlamentar - situação que se manteve até 1997, altura em que o Tribunal retomou o processo e marcou o julgamento para o próximo mês de Outubro.

Eis senão quando - diz-nos o suplemento "Local" do Público de 12.7 - Macário se dirige à actual presidente da Câmara pedindo desculpas pelas acusações, procurando escapar ao julgamento, confessando que "a avaliação que fez das responsabilidades e a atribuição das mesmas à Câmara de Vila Franca não correspondem à verdade dos factos". Assim sendo, é necessário perguntar a Macário: então quem é que fez "carreirismo político"?; quem é que fez "propaganda política" com o objectivo de impedir "a análise e discussão dos problemas"?; quem é que fez "propaganda pessoal" aproveitando a morte de toneladas de peixe"?.
A Presidente da Câmara "admitiu aceitar o pedido de desculpas e retirar a queixa": "A Câmara pode ter uma atitude de generosidade em relação a um processo que, na altura, foi polémico e no qual ficou agora mais claro que não teve qualquer responsabilidade" - esmolou a benemérita senhora, exibindo a generosidade de oferecer o que não lhe pertence e demonstrando que cada Macário tem a Rosinha que merece e vice-versa.

Na Comunicação Social, as grandes parangonas exibindo as calúnias deram lugar a pequenas notícias escondendo as desculpas. Para quê falar mais nisso, não é verdade?, o que passou passou, Macário, Rosinha & Comunicação Social comungam, certamente, a opinião de que se trata de calúnias sérias produzidas por um caluniador seriíssimo , o que confere à situação características muito, muito especiais e, por isso dignas da mais pragmática ponderação. Bem vistas as coisas, tudo correu como estava previsto e era desejado e como a "lógica das coisas" impõe todos os dias: a Comunicação Social vendeu as notícias que quis vender; o PS e o PSD colheram os frutos que quiseram colher; a mentira sobrepôs-se brutalmente à verdade.
Agora, depois de tudo esclarecido, o que é necessário é que o espaço das memórias onde ficaram gravadas as culpas da CDU não seja ocupado pelas desculpas de Macário. Para não estragar o arranjinho. Para não perturbar a ordem natural das coisas.


«Avante!» Nº 1286 - 23.Julho.1998