Exercícios de manipulação da informação

Por Lino de Carvalho


Um dos exercícios mais sugestivos que se puderam fazer nos últimos tempos foi a leitura da nossa imprensa após o referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

A reflexão atenta sobre simples notícias, comentários, análises que foram sendo publicadas produz um volume de matéria mais que suficiente para uma tese de mestrado sobre a imprensa que temos e os padrões de qualidade, de isenção e de rigor que orientam a sua actividade.
E como não quero incorrer no mesmo pecado daqueles que, por incompetência ou má-fé, generalizam as suas apreciações quero desde já dizer que, felizmente, há várias e boas excepções ao que vou escrever. Em todo o caso há um traço geral de apreciação que é comum a muitos dos profissionais e "analistas" que proliferam na imprensa portuguesa.
Todos estaremos recordados como, antes do referendo sobre a IVG, era reclamada esta consulta e, como em geral, o referendo era descrito quase como a salvação desta democracia tutelada pelos Partidos que assim, impediam que a "sociedade civil" se pronunciasse em toda a liberdade e se mobilizasse para uma mais efectiva participação na vida pública. Entretanto, perante a elevada taxa de abstenção, ouvimos e lemos dos mesmos comentadores que afinal "a classe política anda a brincar com o fogo"(1), que "se os mais altos responsáveis políticos se desinteressaram do referendo , dado que fugiram a participar na campanha, porque haveria o povo de se interessar?"(2) e que "os deputados passaram por cima do referendo sobre o aborto e fingiram que o desastre não tinha nada a ver com eles"(3), este em comentário à primeira sessão plenária da Assembleia da República a seguir ao referendo.
Daqui passaram para a apreciação dos anunciados próximos referendos, designadamente, o referendo sobre o Tratado de Amsterdão. E o que lemos a propósito da aprovação das perguntas ? Diz um: "Os pilares da democracia foram de férias...Setenta e cinco dias de descanso para arrefecer os neurónios, naturalmente em brasa depois de terem inventado uma pergunta admirável para o referendo sobre a Europa...É difícil, senão mesmo impossível, encontrar por esse mundo parlamentares com tal poder de imaginação"(4). Outro escreve: "...era aconselhável pensar duas vezes antes de se voltar a pedir-lhe (ao povo) que vote sim ou não sobre qualquer outra matéria. Mas não foi isso que os deputados e lideres políticos fizeram."(5). Outro ainda afirmava: "a forte abstenção no referendo do aborto questiona a realização de novas consultas nos tempos mais próximos ? Os partidos políticos com assento parlamentar apressaram-se ontem a dizer que não podia ser assim"(6). Um cronista escreveu ainda: "E o sempre inconformado e antieuropeista PCP do dr. Carvalhas acaba de manifestar-se como o mais feroz adversário do mesmo referendo (sobre o Tratado de Amsterdão) pelo qual fora o primeiro a fazer campanha (com cartazes e tudo) a favor do não(7).

Desculpem-me os leitores estas várias e insuportáveis citações mas a sua leitura (e muitas outras) são elucidativas de um certo tipo de jornalismo onde a generalização abusiva, o preconceito anti-comunista, a falta de rigor e até a mentira mais descabelada têm vindo a fazer caminho. O camarada Vítor Dias já se referiu a este "drama" no artigo que escreveu para o Semanário(8). Eu próprio protestei junto do Provedor dos Leitores do Diário de Noticias. Porque a verdade é que quem escreve isto sabe perfeitamente:

a) Que o PCP (tal como o Partido Ecologista Os Verdes) sempre se manifestou contra esta enxurrada de referendos;

b) Que, apesar disso, "os mais altos responsáveis políticos do PCP" empenharam-se na campanha da despenalização da IVG;

c) Que, na Assembleia da República, logo após o referendo, o PCP pronunciou-se fortemente sobre os seus resultados;

d) Que o PCP votou contra a resolução (aprovada pelo PS e PSD, com a abstenção do PP) que definiu o referendo sobre o Tratado de Amsterdão, chamando-lhe referendo-fraude, e que sempre denunciou o negócio PS-PSD-PP que levou à resolução do referendo sobre a regionalização, tal como já tinha feito na Revisão Constitucional;

e) Que o secretário-geral do PCP foi quem, no debate do Estado da Nação, colocou a António Guterres, a pergunta sobre a inutilidade do referendo sobre Amsterdão e interpelou o Governo sobre quais as consequências que extrairia desse referendo se a resposta fosse Não;

f) Que o PCP nunca defendeu um referendo sobre o Tratado de Amsterdão mas sim, o que é coisa bem diferente, sobre Maastricht e sobre a Moeda Única. E que foi sobre estes temas que se fez a campanha do Não.


Generalizando e manipulando

Eu sei que nos tempos que correm a memória parece ser cada vez mais curta. Mas é óbvio que não pode ser tão curta que absolva a nossa imprensa de tantas e tão grosseiras mistificações, generalizações abusivas e mentiras escondidas atrás dessa palavra que tudo recobre e tudo falsamente uniformiza, a "classe política".
Se o PCP fosse, de facto, responsável por todos estes males então seguramente que seria tratado pelo seu nome, escalpelizada a sua história, despido na praça pública. Mas como em todos estes episódios o PCP foi a única força política (como aliás o próprio jornal O Público reconhecia num "sobe e desce") que teve uma atitude séria e coerente, que a tempo pôs o dedo nas feridas, que denunciou que "o rei vai nú", que votou contra quando teve que votar e que, apesar disso, se empenhou firmemente nas batalhas políticas do referendo sobre a IVG (como se empenhará nas próximas que se vierem a realizar), então a solução foi (e é) ou ignorar as posições do PCP ou generalizar as apreciações a uma inexistente "classe política", aos "partidos com assento parlamentar", aos "deputados" para não criticarem quem deveriam criticar, isto é, o PS, o PSD e o PP.
O episódio é ilustrativo do grau de "isenção" de quem assim escreve e se pronuncia. Generalizando e manipulando, transmitindo – como lembra Pierre Bourdieu – "uma visão cínica do mundo político, espécie de arena entregue ás manobras de ambiciosos sem convicções", este comentadores e analistas sabem que estão a impedir a formação de uma opinião pública esclarecida e que estão a contribuir para um caldo de cultura onde facilmente se alimentam todos os que desvalorizam a vida democrática e de onde emergem todos os totalitarismos. Mas sabem mais do que isso. Como produtores activos do pensamento ideológico dominante, ao serviço dos interesses económicos (de que o episódio da sobrecapa de publicidade ao terceiro operador de telemóveis Optimus de Belmiro de Azevedo publicada numa revista de domingo do Público confundindo-se com a verdadeira capa é bem ilustrativo) e ideológicos que tutelam os media eles cumprem uma função: a de desvalorizar, ocultar ou distorcer as posições e propostas daqueles que se recusam a ser cúmplices na gestão deste turtuoso sistema, se opõem a ele e não se resignam ao fado do "pensamento único" ou da vitória definitiva dos "mercados" e do modo de produção dominante. É por isso também que na mesma linha de orientação temas como o desemprego, a precariedade ou a miséria; a crescente e intolerável desregulamentação e liberalização das relações laborais; a privatização e degradação das funções sociais do Estado; a miséria, o crime e a corrupção nos novos países recuperados para o sistema, do Centro e Leste da Europa, etc. ou são silenciados ou são remetidos para pequenas notícias em páginas interiores ou são valorizados como a solução "natural", que não se questiona. Em seu lugar multiplicam-se as banalidades, as superficialidades, os escândalos sociais, o "fait-divers". Nada pode perturbar a caminhada vitoriosa do sistema de relações dominantes e até do respectivo léxico. Tudo o resto são obstáculos marginais que não se adaptam á realidade desta "economia global", que não reconhecem as virtudes e os êxitos definitivos do capitalismo e que, por isso, devem ser arredados do caminho e arrumados no baú das coisas sem préstimo.
Contudo, mesmo sem ser necessário aderir a este questionamento do sistema, é possível e desejável que os profissionais da comunicação social – e muitos fazem-no, e bem - reflictam e se interroguem sobre comportamentos como os que criticamos, comportamentos que deliberadamente apagam diferenças e não separam o trigo do joio, que contribuem decisivamente não só para o descrédito da própria função como para o empobrecimento e descaracterização de uma democracia que se quer viva e plural. Para parafrasear Claude Julien, entre "revoltar-se ou agachar-se" há que recusar o caminho que "rebaixa dramaticamente" a qualidade da informação.

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(1) Diário de Noticias, Editorial, 6/7
(2) Expresso, Opinião, 4/7
(3) Expresso, Opinião, 4/7
(4) Diário de Noticias, Editorial, 3/7
(5) Expresso, Opinião, 4/7
(6) O Público, Em Público, 1/7
(7) O Semanário, Crónica da Semana, 11/7
(8) O Semanário, À esquerda, 11/7


«Avante!» Nº 1286 - 23.Julho.1998