A TALHE DE FOICE

Tornar à vida
no Vimioso


A vila do Vimioso, no Distrito de Bragança, tem raízes que mergulham nos alvores de Portugal e um trajecto de humanidade que se perde no fundo dos tempos. Abundam no seu território prodigiosos vestígios de culturas pré-históricas à espera de estudo adequado, a par de construções e arquitecturas que testemunham uma personalidade forjada e fundida nos próprios caminhos da nacionalidade.

Ali, em pleno Trás-os-Montes, as serranias albergam extensas jazidas de mármore e alabastro das mais finas qualidades, às vezes forrando grutas fabulosas e guardando tesouros de actividade humana pré-histórica - como sempre por explorar, neste país onde apenas se reconhecem os tesouros que tenham imediata conversão bancária.

Ali, nas cortantes e extremadas temperaturas transmontanas, ora se esculpiram as duas surpreendentes gárgulas da «Fome» e da «Sede» que ornamentam a frontaria da igreja matriz do século XVI, ora se ergueu na escarpa bravia de Algoso um fantástico castelo, alicerçado no século XII sobre os restos de um castrejo e que ainda hoje se mantém, altivo e poderoso, a vigiar o abismo.

Ali, em suma, vale a pena uma visita.

Foi o que fiz recentemente, sem imaginar que ia ficar a dever a vida à vila e às gentes do Vimioso.

Chegado de um esticão de 400 quilómetros ao volante, feitos de propósito para conhecer a vila, encontrei abrigo e calorosa recepção na Residencial Centro do Sr. José Luís Fernandes, simpático hospedeiro que iria desempenhar um dos papéis decisivos na história. Cansado, deitei-me à uma da manhã e adormeci instantaneamente, para acordar numa sala escura, vagamente húmida e a cheirar a desinfectante. À volta, num círculo apertado de batas brancas, vários rostos olhavam-me flagrantemente consternados, semelhando o plano subjectivo de um filme para que não comprara bilhete. No absurdo da situação, onde não sabia quem era quanto mais onde estava, voltei a olhar o Sr. José Luís - que conhecera horas antes - e decretei compenetradamente, lá do fundo da minha nudez tapada por um lençol: «Eu conheço este senhor. É o dono da residencial». Com esta sábia assumpção - concomitante com a identificação de um frasco de soro ligado ao meu braço esquerdo e um audível suspiro de alívio dos presentes -, emergi para a plena consciência de mim próprio e do que se passara: uma hipoglicémia com perda de consciência, em resultado da má avaliação que fizera do desgaste provocado pela viagem. Debelada a crise, lá segui de ambulância para o hospital de Bragança para análises complementares e controle da situação, sendo transportado pelo próprio chefe dos bombeiros do Vimioso, o Sr. João, que, assinale-se, aguardou até ao meu restabelecimento e me levou de regresso à residencial, seis horas depois de lá me ter ido buscar ao quarto, inconsciente e aos pinotes.

Convém dizer que uma hipoglicémia se resolve com a simples ingestão de açúcar e só constitui um problema sério se, quem a tiver, perder a consciência e a capacidade de agir. Nesse caso, pode até levar à morte se não houver intervenção externa mais ou menos rápida. Foi a que recebi, beneficiando de uma notável sucessão de eficácias, a começar por quem, no meu quarto, surpreendeu as convulsões às quatro e meia da manhã e deu o alerta, continuando no Sr. José Luís que chamou a ambulância, na ambulância que surgiu de imediato, nas urgências do Centro de Saúde do Vimioso que me atenderam sem demora e no médico de serviço que soube agir decisivamente, concluindo-se na atenta observação posterior das urgências de Bragança e na inexcedível disponibilidade dos bombeiros do Vimioso.

Este episódio, insignificante no meio de tantos outros, semelhantes ou muito mais graves, que ocorrem diariamente nas instalações hospitalares portuguesas, não mereceria uma linha se não fosse um pormenor.

Um pormenor assinalado pelo médico que me atendeu nas urgências do Vimioso, ao confidenciar a quem me acompanhava, já eu palrava muito senhor da minha recuperação: «Vá lá, teve sorte, porque querem acabar com este serviço de urgência. E se o serviço já estivesse fechado, tinha de ir para Bragança numa viagem de hora e tal e a coisa podia tornar-se muito complicada».

Tão complicada, que podia sofrer lesões graves ou mesmo morrer por demora na assistência a uma coisa tão banal como uma hipoglicémia.

O que me permite afirmar, com saber de experiência feito, que se agora fui salvo no Vimioso por serviços de urgência responsáveis apesar de precários, mais tarde seria assassinado por uma política de Saúde irresponsável apesar de convencida.

O que transforma num crime monstruoso a actual política governamental de fechar serviços de urgência, pois decerto já matou e vai continuar a matar, ela própria, portugueses. — Henrique Custódio


«Avante!» Nº 1286 - 23.Julho.1998