«Que os mortos descansem em paz»


A trasladação dos presumíveis restos mortais do czar Nicolau II, foi pretexto para mais uma saborosa reportagem do fogozo José Milhazes, no «Público». Milhazes conta-nos, à sua maneira, quase tudo o que se passou. Lendo-o, fica-se com a ideia de que ele esteve lá, viu e ouviu ao vivo, assistiu. Relendo-o, podemos ser lavados a a pensar que, afinal, não podia ter sido exactamente assim. Isto porque, bem lidas as coisas - as que Milhazes escreveu e as que apareceram noutros jornais - vê-se que não devia ser difícil produzir - não estando lá, o texto que Milhazes produziu - estando. Dir-me-ão que Milhazes falou com pessoas várias, apresentou-no-las, ofereceu-no-las em discurso directo - coisa só possível estando lá. E é verdade. Mas também é certo que, lendo bem, constatamos que os entrevistados de Milhazes têm como missão confirmar, em russo, o que o entrevistador pensa, em português. Com efeito este sortudo repórter encontra sempre entrevistados à medida exacta do texto que quer escrever; dir-se-ia que os encomenda, que marca encontro com eles e, na hora certa e no momento certo, lá aparecem todos, cada um acrescentando um ponto ao conto de Milhazes; e assim são dados a conhecer o «marceneiro» que veio de Tula, o «engenheiro» que veio de Tala, o «estudante» que veio de Tela, o «jovem soldado» que veio de Tila, o «homem de idade» que veio de Tola, a «velha enlouquecida» que não sabe donde veio, «a velha exaltada» que veio do mesmo sítio, «a velha» apenas velha que pura e simplesmente veio - enfim um autêntico painel de fazedores da opinião que Milhazes já tinha.

No funeral do czar «o povo ficou de fora»: «as cancelas de acesso à entrada das pontes abriam-se só para os VIP», o que deixou os convidados de Milhazes justamente indignados: isto não se faz, não há direito, vem uma pessoa lá de cascos de Tula, expressamente para «prestar a última homenagem ao czar» (que, aliás, era uma excelente pessoa, não desfazendo), vem outra pessoa lá do cabo de Tola, expressamente para ouvir da boca do «Presidente Ieltsin o pedido de desculpas por essa barbaridade do Partido Comunista», e chegam aqui e batem com o nariz na cancela.
Há-de ter sido pungente a imagem daquela «velha» (cuja proveniência, infelizmente, Milhazes não assinalou) «implorando que a deixassem passar»... Enfim, dramas que escapam ao olhar dos simples mortais mas que o moderno jornalismo capta impressivamente.

Diz Milhazes que mal terminou a cerimónia fúnebre, os que ficaram de fora «correram para os bares mais próximos para beber vodka e cerveja em memória dos mortos», enquanto «os VIP’s foram para um dos melhores restaurantes de São Petersburgo». Uns e outros cumpriam a tradição russa - «que sobreviveu ao comunismo» - de complementar a primeira golada com um respeitoso «que os mortos descansem em paz!» - após o que passavam à segunda, à terceira... à enésima golada.

Há uma falha na reportagem de Milhazes: não ter valorizado devidamente o enormíssimo respeito pelos mortos de que deu provas Ieltsin. Talvez ninguém saiba de quantas goladas foi a sua prestação pós-funeral. Mas sabe-se que, antes do dito, Ieltsin se fartou de respeitar os mortos. De tal forma que - não conta Milhazes mas conta o DN - «Ieltsin caiu ao descer a escada do avião no aeroporto de Sampetersburgo, agarrando-se no último momento ao braço da esposa» e, tanto quanto sei, gritando sempre: «Que os mortos descansem em paz!». — José Casanova


«Avante!» Nº 1286 - 23.Julho.1998