TVisto

O argumento humanitário

Por Correia da Fonseca


Durante a passada semana, em todos os canais portugueses de TV, e sem dúvida não apenas neles, passaram imagens de um dos mais serôdios funerais de que desde sempre há memória: os do czar Nicolau II e sua família, executados sumariamente há setenta anos na sequência da Revolução de Outubro. Com uma particularidade não decerto inédita mas contudo rara: os restos mortais que foram o centro da cerimónia eram apócrifos, de inautenticidade não apenas afirmada por diversos especialistas mas também confirmada pelo patriarca ortodoxo de Moscovo que, com um notável sentido da dignidade, se recusou a estar presente e desse modo avalizar a farsa que, toda a gente o sabia, era apenas uma manobra política.
A intrujice era de tal modo deficitária em matéria de credibilidade que o próprio Boris Ieltsin achou prudente (ou acharam-no os assessores de imagem) demarcar-se um pouco dela: as TV's explicaram-nos que o incomparável presidente russo reflectiu longamente antes de se decidir a fazer o que, sem dúvida, sempre terá sido a sua intenção: incorporar-se na primeira fila do espectáculo. Em alocução ao país, afirmou que o fizera para não estar ausente de uma cerimónia que visava «reconciliar o povo russo». O homem tem o vício das imposturas intragáveis:é óbvio que aquela espécie de homenagem tardia ao mais desacreditado dos déspotas europeus deste século, para mais organizada em torno de um pretexto que tresanda a fraude, só pode dividir mais os russos e não «reconciliá-los».
Então, para quê a iniciativa que seria apenas ridícula na sua pompa um pouco medievalesca se não fosse também inquietante? E claro que para servir de arma de arremesso contra os comunistas, que na Rússia continuam a polarizar não apenas a compreensível nostalgia do passado mas também a justificadíssima e inevitável indignação perante o presente. Lembrar a execução do czar e dos seus, insistir em que se tratava de uma família, a família Romanov, em que o chefe seria naturalmente um dedicado pai de família, evocar as crianças abatidas, tudo isso suscita uma consternada reprovação na opinião pública chocada pela tragédia ocorrida há setenta anos. E a responsabilização política pelo facto recai nos comunistas actuais, russos e também não russos. «Se não foste tu, foi teu pai!» O lobo da fábula deixou descendentes.


Os outros mártires

Poder-se-á observar, e com verdade, que as breves imagens das tardias exéquias dos Romanov pouco impacto terão tido entre nós, e que não são nada em confronto com a permanente campanha anticomunista que todos os dias assina o ponto, com maior ou menor empenhamento, na televisão portuguesa. Em todo o caso, e sendo clara que o «show» de Moscovo não foi montado a pensar nos portugueses, registe-se que o aliás prestigiado canal franco-alemão ARTE, distribuído em Portugal pela TVCabo e portanto acessível a muitos milhares de portugueses, consagrou um serão inteiro ao acontecimento, numa emissão de extensão notável que mereceu informação a toda a largura de uma página de um dos maiores diários portugueses, o «DN». Quanto ao «Público», consagrara na véspera duas páginas ao acontecimento. E é claro que um e outro não fizeram mais que seguir uma onda que veio de longe.
Escusado será dizer que as execuções de Ekaterineburgo foram, num quadro terrível, um momento atroz. Comparável decerto ao encarceramento da família real francesa e posterior execução de Luís XVI e Maria Antonieta no contexto da Revolução Francesa. Recorde-se, aliás, que durante perto de dois séculos, e ainda hoje, estas duas execuções serviram e servem como munições de formato humanitário para disparar contra a implantação das repúblicas modernas e da democracia tal como hoje é orgulhosamente reivindicada, mesmo quando não sinceramente vivida, em todo o Ocidente.
Acontece, porém, que o argumento humanitarista implica deveres até para os que dele se servem como mero instrumento de propaganda. Assim, lembrar os Romanov não dispensa, muito antes pelo contrário, a memória dos muitos milhares de russos que morreram em martírio sob a repressão czarista, em plena inocência ou apenas por terem desejado uma Rússia mais digna e mais justa. Entre eles, um jovem que foi enforcado: tinha um irmão mais novo que mais tarde seria conhecido por Vladimir Ilitch Lénine. Niguém fala disso. Esses mortos não têm direito a exéquias faustosas, sequer a que os media se lembrem deles. Pelo contrário: omitem-nos deliberadamente, esquecem-nos. Isto é: assassinam-nos uma segunda vez. Em cumplicidade com o czarismo por cuja execução sem dúvida cruel agora derramam lágrimas de tinta impressa ou de luzes num ecrã.


«Avante!» Nº 1286 - 23.Julho.1998