EDITORIAL

Irresponsabilidade e arrogância


As reacções do Governo às lutas dos pilotos das barras e dos camionistas que transportam mercadorias perigosas, evidenciam a irresponsabilidade e a arrogância que cada vez mais dão forma à forma de "governar o País" adoptada pelo engenheiro Guterres. Tudo indicando que, nesta matéria, o pior ainda está para vir, é certo que o que já veio é suficiente para causar sérias preocupações.

O exame a que o Governo queria submeter os camionistas era, para a esmagadora maioria deles, um autêntico despedimento com justa causa. Tratava-se, ao fim e ao cabo, de prosseguir caminhos e métodos que já atiraram para o desemprego muitos milhares de trabalhadores - e como sempre acontece nestas situações o governo não hesitou em recorrer a velhas fórmulas da velhíssima cartilha antilaboral: o direito á greve foi posto em causa, multiplicaram-se as ameaças e chantagens , invocaram-se, hipocritamente, "os superiores interesses do País". A greve dos camionistas - contra os exames/despedimentos, por melhores salários e por melhores condições de trabalho - levou ao encerramento total ou parcial, por falta de combustíveis, da quase totalidade dos postos de abastecimento do País. Comentando este facto o secretário de Estado Armando Vara falou de "prejuízos graves para a economia nacional" e utilizando a arma-tipo do Governo disparou a habitual ameaça: para pôr termo à greve, "O Governo tem um plano e executá-lo-à". Referia-se às clássicas "medidas de emergência" que, como se sabe, incluem a clássica "requisição civil". Alcançada parte das reivindicações apresentadas - do lado do Governo há a garantia da anulação, nos exames, do risco de desemprego que lhes era inerente; por parte da associação patronal há o acordo com a atribuição de um subsídio de risco cujo valor está a ser discutido na base dos 40 contos reivindicados pelo camionistas - a greve foi , naturalmente, suspensa.

Demonstradas ficaram a razão e a força da razão dos trabalhadores, a importância decisiva da luta na defesa dos seus interesses e direitos. Demonstrado ficou, igualmente, que se o Governo não tivesse rejeitado há um mês e meio o que aceitou agora, os camionistas não teriam tido necessidade de recorrer à greve - pelo que "os prejuízos graves para a economia nacional" e para "os interesses do ´País" são da exclusiva responsabilidade do Governo, da sua arrogância, da sua irresponsabilidade, da opção que tomou e assume de se colocar sempre, sempre contra os interesses dos trabalhadores.

No caso dos pilotos das barras, a situação é semelhante, assumindo em alguns aspectos maior gravidade. Na origem básica da situação está a febre privatizadora do governo do PS e o seu objectivo de criar condições para proceder à privatização dos portos, à liberalização de alguns importantes sectores estratégicos, enfim, à privatização de todas as actividades portuárias. Decidindo arbitrariamente retirar a autonomia aos pilotos das barras e tornando-os dependentes das administrações dos diversos portos, o Governo semeou ventos. E quando a inevitavel tempestade surgiu, sacudiu a água do capote e lançou as culpas de tudo para cima dos pilotos. Inclusive, não hesitou em, substituindo-se e antecipando-se às decisões dos tribunais, considerar alguns pilotos culpados de acusações que só no final do ano serão submetidas a julgamento. Em todo este processo, o Ministro João Cravinho esteve à altura do governo a que pertence guterrizando exemplarmente a situação. Para além do recurso à mesma argumentação hipócrita e pretensamente defensora dos "interesses do País" utilizada em relação aos camionistas, o Ministro Cravinho e o Governo exibiram, ou uma monumental ignorância ou uma irresponsabilidade de dimensão semelhante. Em nome do Governo, o Ministro suspendeu o regulamento dos serviços de pilotagem, dispensando os pilotos e deixando aos comandantes dos navios a decisão de entrarem ou sairem dos portos pelos seus próprios meios e por sua conta e risco - com o tranquilizante aviso de que, no caso de encalharem, os seguros cobririam as despesas... E sempre minimizando junto da opinião pública as eventuais consequências da ausência dos pilotos , nomeadamente divulgando "informações" género: "No Verão as condições de tempo nos mares são mais favoráveis" e :"as barras portuguesas são totalmente conhecidas dos comandantes das embarcações". Em crescendo de irresponsavel delírio, o Ministro produziu, depois, a disparatada ideia de substituir os pilotos das barras por pilotos automáticos; e finalmente - violando a lei da greve e colocando-se na ilegalidade - decidiu conceder licenças de pilotagem a oficiais da marinha mercante - com a curiosidade de tal decisão ter sido comunicada à Capitania do Porto por um organismo (o INPP) que, contra a opinião dos pilotos, o Governo extinguiu na quinta feira passada.
Na sequência de tanta irresponsabilidade, quatro navios encalharam, até ao momento, em vários portos - felizmente, ao que parece, sem consequências particularmente graves. E poucas pessoas duvidarão de que a responsabilidade destes acidentes e de outros que eventualmente venham a verificar-se, é toda do Governo do engenheiro Guterres.

Também neste caso os "interesses do País" estão a ser prejudicados por efeito da irresponsabilidade e da arrogância do Governo. Neste cenário surreal adquirem maior relevância as garantias dadas pelos pilotos de que, no que lhes diz respeito, tomarão "todas as medidas para nunca faltar pão ao País". Mas não há qualquer sinal que indicie ter o governo do engenheiro Guterres entendido o significado dessa garantia. Afinal, ao Primeiro Ministro e aos ministros todos nunca há-de faltar o pão, não é verdade?


«Avante!» Nº 1287 - 30.Julho.1998