Oposição de esquerda, coerente e responsável

Por António Filipe


Capacidade de iniciativa própria, sentido de responsabilidade, seriedade no tratamento de todas as matérias, firmeza e coerência na defesa das posições mais favoráveis aos trabalhadores e ao povo português, caracterizam a acção do PCP, no balanço de mais uma sessão legislativa.

Neste momento pré-estival, em que todos os ministros se acotovelam no alinhamento dos telejornais a anunciar intenções, projectos e medidas futuras, recorrendo mesmo a uma nova figura, muito em voga, que é a celebração de protocolos entre ministérios, aproveitou o ministro dos Assuntos Parlamentares para divulgar um balanço da 3ª sessão legislativa que merece referência, por ser um exercício, no mínimo, falacioso, de análise do trabalho da Assembleia da República.
Partindo da apresentação de dados estatísticos relativos à iniciativa legislativa do Governo perante a Assembleia da República e à produção legislativa concretizada com base nessas iniciativas, procura o ministro dos Assuntos Parlamentares extrair a conclusão de que, ao contrário do Governo que se farta de trabalhar, a Assembleia da República demora uma eternidade a aprovar seja o que fôr, entravando assim a governação do país.
Sob o significativo título de "a oposição perante a iniciativa do Governo", queixa-se o ministro da excessiva morosidade na aprovação de diplomas propostos pelo Governo, dando disso mesmo, alguns exemplos: Um diploma que esteve 601 dias até ser aprovado em votação final global, um outro que esteve 556 dias, e ainda um outro 439. Mais três propostas de lei que se encontram na AR, há 519, 501 e 474 dias, sem serem aprovadas.

Ora, sendo tais exemplos factualmente verdadeiros, sendo verdade que existem diplomas a aguardar aprovação (ou reprovação) que bem poderiam e deveriam estar de há muito aprovados (ou reprovados), já é inteiramente falso que tal demora possa ser atribuída à oposição. Se quer queixar-se da morosidade dos trabalhos parlamentares, o Governo deve queixar-se em primeiro lugar do próprio PS, a cuja falta de empenhamento se deve a demora de que o Governo se lamenta. O PS faz assim "o mal e a caramunha". Faz o "mal" na Assembleia, para poder fazer a "caramunha" através do Governo, culpando a oposição.
A verdade é que o Governo é o último dos agentes parlamentares a poder queixar-se da morosidade dos trabalhos. A prioridade que a Assembleia da República tem dado à discussão e aprovação de iniciativas legislativas do Governo, é inquestionável. Todas as propostas de lei que o Governo tem considerado prioritárias têm sido debatidas, quer na generalidade, quer na especialidade, ainda que por vezes à custa das sessões de "trabalhos forçados" que marcam normalmente o final de cada sessão legislativa (à excepção da 2ª sessão legislativa, cuja parte final foi ocupada pela marcha forçada da revisão constitucional, imposta pelo PS e pelo PSD).
Muito mais razão de queixa da morosidade na apreciação das suas iniciativas legislativas terá o Grupo Parlamentar do PCP. Senão, o que dizer do projecto de lei de "grandes opções da política de segurança interna e de medidas imediatas para defesa da segurança dos cidadãos, que foi apresentado há 1003 dias, foi debatido na generalidade há 567 dias e ficou a aguardar votação, à espera que o Governo cumpra a promessa de apresentar uma proposta de lei sobre a mesma matéria? Ou o que dizer do projecto de lei de criação dos Conselhos Municipais de Segurança dos Cidadãos, que demorou 847 dias entre a aprovação na generalidade e a votação final global, por óbvia obstrução do PS? Ou o que dizer do projecto de lei de Estatuto do Dirigente Associativo Voluntário, que foi aprovado na generalidade há 448 dias e não se sabe ainda quando será votado na especialidade? Ou o que dizer do projecto de lei destinado a regular o acesso à profissão de taxista, que foi aprovado na generalidade há 462 dias e se encontra nas mesmas condições do anterior? Ou o que dizer ainda do projecto de lei destinado a criar condições de participação dos pais e encarregados de educação na vida escolar, que foi totalmente recusado na especialidade quase dois anos depois de ter sido aprovado na generalidade?

Estes exemplos, de entre muitos que poderiam ser dados, revelam não apenas que o Governo está muito longe de ser o principal prejudicado com morosidades parlamentares, mas acima de tudo que a demora, ou em alguns casos o manifesto atraso, na apreciação de iniciativas por parte da Assembleia da República tem causas concretas que importa analisar com seriedade e que são completamente escamoteadas no pretenso balanço feito pelo ministro dos Assuntos Parlamentares
Em alguns casos, a morosidade tem causas concretas e atendíveis. Ao contrário do Governo que pode preparar diplomas no segredo dos deuses, e que pode demorar o tempo que quiser a discutir internamente um qualquer diploma, os trabalhos da Assembleia da República têm regras de transparência democrática. Decorrem publicamente, integram normalmente audições públicas, e quase ninguém compreenderia que a Assembleia da República pudesse aprovar leis tão importantes e extensas como a reforma do Código de Processo Penal, o Estatuto do Ministério Público ou a Lei da Televisão, sem uma ponderação atenta, ainda que um tanto demorada, das soluções a aprovar. Não falta por aí quem critique a Assembleia da República, por vezes com razão, pelos maus resultados de leis feitas à pressa.

Outros casos existem, seguramente, em que a morosidade não é tão atendível, e poderá ter uma de duas causas: A falta de empenhamento do próprio partido proponente na aprovação da iniciativa, ou uma acção deliberada da parte de quem tenha interesse, e sobretudo condições, para entravar a tomada de determinadas decisões. E assim sendo, já que o Governo se queixa da oposição quando lamenta a morosidade dos trabalhos parlamentares, seria no mínimo exigível que desse algum exemplo, um só que fosse, de alguma iniciativa do Governo cuja apreciação tenha sido inviabilizada, ou protelada, por acção das oposições.
O problema é que o balanço apresentado pelo ministro dos Assuntos Parlamentares, não é sério, e ainda menos inocente. Do que se trata, é de manipular alguns números e de falsear o contexto político em que se inserem, por forma a ressuscitar com novas roupagens a teoria cavaquista das "forças de bloqueio".
O que faz agora o ministro António Costa é retomar uma ladainha que Cavaco Silva popularizou, destinada a criar na opinião pública a ideia de que o Governo trabalha que se farta, e que só não faz mais porque a Assembleia da República – onde está a oposição e porque lá está a oposição – se limita a atrapalhar a acção do Governo.
Porém, a política de oposição à oposição em que o PS se tem vindo a especializar passa acima de tudo pela já conhecida teoria das "coligações negativas", servida sob sucessivas ameaças de iminentes crises políticas, com a qual pretende manter o PCP sob chantagem permanente, no seu posicionamento face à política e às propostas legislativas do Governo.
O objectivo é claro: Trata-se de tentar obrigar o PCP a posicionar-se perante as propostas do Governo, não pelo que elas são em si mesmo, mas pelo que elas podem representar para a chamada estabilidade governativa. E assim, das duas uma: Ou o PCP viabiliza as propostas do Governo independentemente do seu conteúdo concreto, ou fica, perante a opinião pública, com a pesada responsabilidade da abertura de uma crise política.
É assim que, para a comunicação social voluntária ou involuntariamente aderente à difusão desta teoria, e para a parte da opinião pública por ela influenciada, estaria o PCP na Assembleia da República manietado por um verdadeiro colete de forças perante qualquer proposta do Governo. Ou bem que a viabiliza e abdica de ser oposição, fazendo "o frete" ao Governo. Ou bem que a inviabiliza e entra em coligações negativas, fazendo "o frete" à direita.

Este quadro, que configura um exemplo típico da conhecida situação de ser "preso por ter cão e preso por não ter", vem afinal confirmar a justeza da postura assumida pelo PCP, de definir as suas posições de acordo com os seus princípios, valores e convicções.
Daí que, já que estamos em maré de balanços, seja permitido referir que, no final de mais uma sessão legislativa, o PCP mantém uma capacidade de apresentação de iniciativas legislativas (156 projectos de lei na presente legislatura) que suplanta todos os restantes grupos parlamentares (apesar da enorme superioridade numérica do PS e do PSD). Que 23 projectos de lei do PCP foram recusados liminarmente pelos votos do PS (conjugados frequentemente com os votos do PSD e do PP), apesar de corresponderem a justas e insistentes reivindicações de vastos sectores da população portuguesa, de terem como objectivo comum o progresso social e o melhoramento das condições de vida dos portugueses, e de coincidirem muitas vezes com promessas feitas pelo PS antes das eleições. Que ainda assim, por acção do PCP, foram aprovadas várias leis, global ou pontualmente positivas, sobre diversas matérias. E que, relativamente a todas as propostas, vindas quer do Governo, quer dos outros Grupos Parlamentares, a postura do PCP foi sempre a de as analisar com seriedade, em função do respectivo conteúdo, e de lutar pelas soluções mais adequadas, tendo em conta acima de tudo os reais interesses dos povo português.


«Avante!» Nº 1287 - 30.Julho.1998