Portugal 2000 - Debates para uma Política de esquerda

Caminhos para a unidade


A Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra foi palco, no ínico deste mês, de um animado debate subordinado ao tema «O Projecto de Esquerda e de Poder - Que Políticas? Com que forças? Por que caminhos ?», em que participaram Boaventura Sousa Santos; Fernando Rosas; Manuel Villaverde Cabral e Vítor Dias.
Moderado por Jorge Gouveia Monteiro, o confronto de ideias permitiu uma análise diversificada da sociedade actual e a convergência na conclusão de que a unidade das forças de esquerda - por difícil que seja - é condição essencial para a edificação de um mundo mais justo. Um debate enriquecedor, de que reproduzimos alguns excertos, através das intervenções dos principais oradores.

... A primeira questão e primeira contradição é esta: a globalização tem um discurso de inclusão e uma prática de exclusão. Nós nunca assistimos que tanta gente esteja a ser excluída da fruição dos bem de consumo a nível global, das suas necessidades básicas, como neste momento. A produção de miséria e de pobreza nunca foi tão activa e tão agressiva quanto é hoje. No entanto, o discurso esconde esse trabalho de exclusão, em nome efectivamente de uma globalização aparentemente hegemónica.
... Esta globalização é muito excluente e está a produzir aquilo que eu chamo fascismo social.
... No mesmo momento em que a democracia se legitima com o grande mecanismo de inclusão no final do século, notamos que a democracia é cada vez ela própria também mais excluente, cada vez mais coisas menos importantes são sujeitas, digamos assim, o controlo democrático e cada vez mais aquilo que é importante no domínio da vida económica, no domínio da vida política está fora do nosso controlo democrático.
... O que é que nós vamos fazer ? A minha ideia é que nós realmente temos que inventar um novo contrato social e para isso nós vamos ter que encontrar novas formas de regular a nossa sociedade...
... A crise é nós conformarmo-nos com aquilo que está. E o que está são exactamente estas formas de destruição da convivencialidade, dos níveis de vida, das expectativas das pessoas, do direito à felicidade, do direito ao trabalho, do direito a uma vida digna, que é produzido simultaneamente de uma maneira global e de uma maneira desorganizada. ... Daí que acima de tudo, em meu entender, é necessário produzir inconformismo, sermos rebeldes.
... É preciso que a gente pense nas solidariedades, na globalização que eu chamo contra-hegemónica dos que sofrem, (...) de todos aqueles grupos que se sentem discriminados numa certa sociedade e têm que realmente encontrar formas novas organizadas de poderem dar a conhecer a sua luta. Como é que isto se faz ? (...) Seria estúpido pensarmos que as lutas vão ser no poder ou no contra-poder. É preciso lutar no Estado e fora do Estado. É preciso lutar na resistência, no poder e no contra-poder.

... Estamos a falar de hegemonia no sentido gramsciano do termo a sério, quer dizer, estamos a falar numa cultura que se torna dominante através do controlo dos órgãos de informação e através do estabelecimento de mecanismos de hegemonia que tornam os comportamentos de resistência como comportamentos desviantes, como comportamentos marginais e portanto como comportamentos socialmente condenáveis, talvez a anunciar que eles venham a ser politicamente condenáveis.
... A esquerda está numa situação defensiva. (...) Já esteve, no passado. Se nos lembrarmos da situação da esquerda nas vésperas do triunfo dos regimes fascistas na Europa, na segunda metade dos anos 30, a situação - ainda que naturalmente do ponto de vista estrutural e conjuntural tenha grandes diferenças - é uma situação histórica que colocou também nessa altura a esquerda na defensiva.
... O que eu penso é que é necessário assumir essa defensiva e saber encontrar os caminhos de unidade e de organização dentro dessa situação de defesa, dessa situação defensiva em que nos organizamos. Eu penso que a defensiva aliás facilita algumas coisas. É normalmente nas situações de ofensiva que há mais divergências... A defensiva obriga a limitar o campo das divergências e a situar e a limitar aquilo que pode unir as diversas sensibilidades em torno da defesa de um programa mínimo.
... O campo da esquerda à esquerda do bloco central é um campo minoritário, é um campo que vive uma situação de defesa das conquistas que são o património tradicional da esquerda, mas isso não pode fazer obviamente esquecer nem que ela constitui um projecto de poder ou que pretende constituir um projecto alternativo de poder quando isso for possível nem, naturalmente, perder de vista que é exactamente a formulação desse objectivo que pode ser o único e mais forte elemento agregador desse campo social e político.
... Não acompanho totalmente o Vítor Dias quando ele diz que este processo tem que ser um processo de passos de grupos de sensibilidades. Tem que ser um processo social, político, e tem que ser, de alguma forma, uma movimentação que dê coesão às coisas, que aproxime as coisas, as junte.
... não penso que o PS enquanto tal possa mudar, há aqui uma lógica de monopólio de poder ao centro e há um certo PS que está nessa lógica e não vai mudar por muita pressão que se faça. (...) Naturalmente há uma parte do PS que pode ser atraída e que pode ser divida para este campo e isso é, obviamente, um objectivo interessante.

... outro pano de fundo é a integração europeia. Integração europeia que desarticula também o sistema político.
... induziu uma prosperidade... que fez de Portugal uma espécie de periferia contente. Isto é importante, porque o grave é o contente. Periferia, nós éramos, estávamos habituados, mas enquanto periferia descontente isso tinha um conteúdo e por ventura um factor de mobilização. Quando ela se torna contente, por via dessa prosperidade induzida, naturalmente que é mais complexa de gerir politicamente. Desde Maastricht, em particular, constrangimentos extremamente fortes do ponto de vista colectivo mas com contrapartidas individuais também elas desarticuladoras e muito aliciantes, quer dizer, há simultaneamente uma espécie de polarização de uns para quem há, de facto, cada vez mais oportunidades de realização, profissional, pessoal, etc., enquanto outros são marginalizados e é-lhes retirada qualquer tipo, até daquelas oportunidades tradicionais de pelo trabalho, esforço, poupança, etc. conseguir alguma coisa na vida.
... Eu não me sinto totalmente desconfortável numa posição defensiva. O que eu entendo, todavia, por uma posição defensiva da esquerda é tipicamente a dos grãos de areia.
... É evidente que para a minoria de que estávamos a falar possa crescer terá naturalmente que ir buscar ao campo onde actualmente o Partido Socialista está instalado, o campo eleitoral, mas também, possivelmente, muitos militantes cuja frustração provavelmente não é menor do que a nossa...
... Na minha opinião, em termos de análise política só poderá acontecer na oposição, isto é, quando o PS estiver na oposição, obviamente enquanto estiver no governo isso nunca acontecerá porque esse é o cimento que une contentes e descontentes conformados e inconformados e é claro que isto põe problemas de política parlamentar, partidária, eleitoral banal...
... Alguém me perguntou - e acho uma pergunta legítima - estamos aqui a dividir o PS em fatias pequeninas, a ver quem é que leva mais e alguém perguntou: "e o PCP ?" pois o PCP deverá diluir-se, tendencialmente dissolver-se nesta concepção, e eu penso que esse é um grande problema e a experiência histórica, aliás, é complicada, porque quando isso foi feito ou tentado às vezes os resultados foram piores. A emenda foi pior que o soneto...

... Uma ideia muito importante é que nós vemos este processo da alternativa de esquerda como um processo que exige diálogo político, que exige agregação de forças e energias dispersas à esquerda vemos que isso é essencial, mas vemos mais do que isso.
... Vemo-lo também como um processo social e político, no sentido rigoroso do termo. A classificação que fizemos sobre a política actual do PS como não sendo um acidente mas uma trajectória que culminou nisto, leva-nos a uma outra conclusão: a de que o PS não rectificará esta sua política e estas suas orientações fundamentais, a nosso ver, a não ser debaixo de uma fortíssima pressão social, debaixo do susto ou do abalo de uma significativa perda de base eleitoral a favor de correntes de esquerda com uma política de esquerda mais consequente.
... Nós sabemos bem que em muitas situações históricas, resistir, é a primeira obra construtiva que se pode fazer.
Agora, falando de alternativa de esquerda achamos que devemos ter e formular a ambição de querer pesar sobre o poder, de condicionar o curso dos acontecimentos sobre as soluções governativas e a política governamental... Os povos, os trabalhadores, as massas precisam de esperança, precisam de horizontes em que as coisas valham a pena. Em que se crie uma esperança de que se vai contar.
... Se há coisa que não estamos sinceramente a pensar, e eu espero que as gerações de comunistas que se sigam à minha também não pensem, é em diluições, em fusões e outras confusões. E isto não é apenas um comentário à ideia exposta pelo Manuel Villaverde Cabral. É uma concepção.
É que nós situamo-nos no quadro do pluralismo, do respeito pelas diferenças, pelas autonomias. Não estamos a pensar em entidades miticamente refundadas, amalgamadas e reunidas num caldeirão qualquer, supostamente comum. Estamos a pensar naquilo que podemos fazer em conjunto, naquilo que gente de um lado e de outro pode vir a fazer em conjunto, naquilo que cada um - ponto muito importante, não vá alguém pensar que o caderno de encargos é apenas para o PCP, força principal à esquerda do bloco central - tem de fazer. Todos os grupos, correntes, sensibilidades, têm que puxar pela cabeça, fazer por si, andar para a frente, conquistar influência. E nós procuramos tratar de nós próprios e tratar do reforço da nossa influência. E nenhuma dúvida: iremos às próximas eleições e a outras seguintes e a outras batalhas, com confiança em nós próprios, pedindo mais confiança em nós próprios, mais votos para nós próprios.


«Avante!» Nº 1287 - 30.Julho.1998