Compartes reúnem em Viseu
Os baldios são dos povos


A nova Empresa Pública, criada pelo actual governo para gerir as matas públicas e comunitárias, foi o tema mais insistentemente tratado no Encontro Distrital que, no início de Julho reuniu em Viseu 350 compartes dos baldios. Um encontro em que foi feito balanço das muitas dificuldades com que os compartes deparam no dia-a-dia, de ano para ano. E da «invulgar obra de progresso económico, social e cultural que esta forma de administração permitiu erguer em centenas de comunidades».

Num tempo em que – pelo menos formalmente – questões como desenvolvimento sustentável, a defesa do ambiente, ou a necessidade de pôr travão à desertificação humana, surgem como preocupações incontornáveis, a questão dos baldios ganha ainda uma maior acuidade. Será talvez hoje mais difícil do que há uma dezena de anos atrás considerá-los uma realidade anacrónica – designação que envolve uma perspectiva de progresso cada vez mais indefensável.
E no entanto, a antiquíssima luta dos compartes em defesa dos baldios, continua. Sob formas diversas, respondendo a ameaças que surgem sob diferentes capas. Mas continua. Enquanto, simultaneamente, se afirma como uma significativa experiência de administração democrática.


A obra realizada

Em 22 anos de administração democrática dos baldios pelos povos foi possível concretizar, em mais de uma centena de localidades do distrito de Viseu, um notável conjunto de iniciativas – divulgados no documento aprovado no Encontro de Viseu - que se poderão agrupar, fundamentalmente, em três domínios:

Desenvolvimento económico-social. Uma área em que se apostou em dar resposta a um leque diversificado de necessidades: construção e reparação de caminhos rurais, arruamentos, estradas, pontes; construção de fontanários ou redes de distribuição de água; infra-estruturas de combate a incêndios e limpeza de matas; exploração de rochas e águas para a agricultura; infra-estruturas económicas – moagens, salas de ordenha, um lagar de azeite e um alambique; projectos de florestação e reflorestação; novas pastagens; apoio aos agricultores ao nível dos aproveitamentos tradicionais dos baldios – manutenção da pastorícia em muitas zonas serranas, aproveitamento de lenhas, estrumes, pedra, saibro, água.

Desenvolvimento socio-cultural e comunitário. A construção de centros culturais, recreativos ou de convívio, o apoio à criação e funcionamento de associações que desenvolvem a sua actividade nestas e noutras áreas, o apoio a ranchos folclóricos e à construção ou aquisição de equipamento para capelas e igrejas, o estímulo a actividades desportivas - contam-se entre as iniciativas desenvolvidas neste plano.
Toda uma acção em que há que destacar o desenvolvimento do espírito comunitário, concretizado «no próprio exercício desta genuína forma de democracia directa» e a defesa dos baldios «corporizada em centenas de actos de luta».

— Desenvolvimento ambiental. Através da «manutenção dos ecossistemas serranos, com grande equilíbrio ecológico; a pureza do ar, da água, de muitos espaços verdes, da biodiversidade e da fundamental relação de equilíbrio entre a natureza e o homem».


Três grandes inimigos

Entre 1976 e 1992 registaram-se 18 iniciativas legislativas – por parte do PSD, PS e CDS/PP – no sentido de tornar possível a sua privatização. Projectos de lei que não foram avante por força da luta dos compartes.
Entretanto, essas iniciativas no plano político têm as suas bases económico-sociais e institucionais.
O Encontro de Viseu apontou, como «os três grandes inimigos dos baldios»:

Os grandes interesses económicos, nomeadamente as indústrias de celulose, de turismo de montanha e especuladores imobiliários;
Autarquias locais, que «tentam fazer deles fontes de financiamento» e lançam mão de vários expedientes para a sua passagem à propriedade administrativa autárquica.
Ex-estruturas florestais que, em muitos casos, não souberam ou não puderam assumir uma postura de apoio e cooperação perante os conselhos directivos e assembleias de compartes e, ao invés, levantaram dificuldades e entraves, retiraram verbas, mantiveram atitudes de interferência, controle e fiscalização.


Os perigos da
empresa pública

O Encontro de Baldios de Viseu manifestou o seu desacordo e desconfiança em relação à decisão do actual governo de criar uma empresa pública para gerir as matas públicas e comunitárias e a todo o desenvolvimento deste processo e alertou para alguns perigos.
Perigos que, como se afirma no documento do Encontro, passam pela possibilidade de tal empresa se vir a transformar gradativamente em empresa de capitais mistos e depois em empresa privada, "tentando, por esta forma, o objectivo nunca conseguido na Assembleia da República, ou seja, arrastar os baldios para o domínio privado, no próprio processo de privatização da empresa".
Por outro lado, esta empresa visa o lucro. Pelo que "poderá cair na tentação fácil de tratar os baldios com vários pesos e várias medidas, conforme os baldios estejam melhor situados, disponham de mais recursos instalados, tenham melhores acessos, sejam constituídos por maiores manchas contínuas, etc., abandonando investimentos em baldios com inferiores condições, deixando de cumprir a função social que ao Estado caberia sempre cumprir, desenvolvendo por igual todos os baldios para maior riqueza dos povos".

Uma situação face à qual os compartes se afirmam "preparados para retomar esta luta secular em defesa da propriedade comunitária".

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Garantir direitos

«Os baldios estiveram no passado, estão no presente e terão de continuar a estar no futuro na posse, uso e fruição dos povos e sujeitos a leis que garantam formas de administração democráticas por esses mesmos povos». Este o primeiro ponto da Resolução aprovada no Encontro de 5 de Julho em Viseu.
O documento valoriza, de seguida, os recursos e potencialidades dos baldios e reclama o apoio técnico, jurídico e financeiro na implementação de projectos de exploração de novos recursos, designadamente ao nível da florestação, pastorícia, cinegética, piscicultura, apicultura, exploração e aproveitamento de águas, massas minerais, aproveitamentos agrícolas, aproveitamentos turísticos, desenvolvimento e ambiente.
Tendo em conta seu o papel no desenvolvimento económico, social e cultural, as estruturas organizativas dos baldios reclamam que lhes seja atribuído o estatuto de instituições de utilidade pública, de par do acesso à informação e participação na negociação de todas as matérias que se prendam com os baldios e a canalização de verbas para o apoio ao associativismo ligado à administração dos baldios.
Na perspectiva de criação de uma futura empresa pública, os compartes exigem a obrigatoriedade desta negociar, colectivamente, com os Secretariados Distritais de baldios as bases gerais e contratos com os Conselhos Directivos de baldios e desde já mandatam o Secretariado dos Baldios de Viseu para acompanhar técnica e juridicamente todas as matérias que tenham a ver com o estabelecimento de protocolos ou contratos.
O Encontro considerou ainda essencial que seja estudada «uma forma superior de organização nacional de baldios, enquadradora e coordenadora da acção dos povos dos baldios, como espaço de diálogo e forma institucional de negociação».
Um conjunto de decisões que visa garantir que sempre que venham a ser postos em causa os "interesses das comunidades serranas em relação ao seu histórico direito à posse, uso, fruição e administração dos seus bens comunitários, se desenvolvam as lutas necessárias à garantia de tais direitos».
A concluir, o documento cita as palavras-advertência de Aquilino Ribeiro: «A serra é dos serranos desde que o mundo é mundo, herdada de pais para filhos; quem vier para no-la tirar, connosco se há-de haver!


«Avante!» Nº 1287 - 30.Julho.1998