A TALHE DE FOICE

Silêncios


Um jovem morreu esta semana em Lisboa vítima de espancamento.
A informação apareceu primeiro no placard electrónico, letras vermelhas num fundo preto - se a memória não falha - com a mesma ligeireza dum horário de comboio, um anúncio de pizas ou um desfile de modas. Era segunda-feira, a noite estava quente, e a letargia em que alguns insistem em mergulhar o país não podia de ser abalada.
Tanto quanto sei, não teve honras de abertura nem direito de antena aproximado sequer a uma qualquer notícia de futebol. Remetida lá para o fim do noticiário por um alinhamento ditado por cada vez mais insondáveis 'critérios jornalísticos', a informação foi servida como um isco a acenar ao espectador: «fique connosco que já lhe contamos tudo».

E no entanto, a notícia era brutal e séria. Um murro na boca do estômago à hora de jantar, um caso a exigir o despertar das consciências a todo o momento: um jovem dera entrada no hospital em estado de coma profundo após ter sido espancado à porta de uma badalada discoteca lisboeta.
Que não estava bêbado nem drogado confirmaram os médicos logo nas primeiras análises. Que apenas tentara acalmar os ânimos numa briga em que um amigo se envolvera atestaram as testemunhas do caso. Que fora brutalmente espancado, já depois de estar caído por terra, por dois 'seguranças' da dita discoteca comprava o registo captado por uma câmara de filmar de um posto de gasolina próximo do local dos incidentes. Que ficara em estado muito grave e com lesões irreversíveis disseram os médicos que o assistiram, prenunciando o pior.

E o pior aconteceu, como foi informado terça-feira, outra vez a meio de um naipe diversificado de notícias.
Um jovem morreu num hospital de Lisboa na sequência do espancamento de que fora alvo, na madrugada de domingo, por parte de dois homens cuja missão, teoricamente, é garantir a segurança de discotecas.
Desconheço-lhe o nome, o rosto, a história. Mas sei o bastante para gritar a indignação por esta vida deixada por viver.

Dir-se-á que é um caso de polícia, mas não é totalmente verdade. A polícia já fez o que lhe competia, prendendo os suspeitos do crime.
O que resta por fazer, o imenso vazio, está na ausência de medidas por parte das autoridades competentes, a quem não parece incomodar o facto de funções de segurança de locais públicos estarem entregues a pessoas sem a mínima formação, a irresponsáveis, que só não se classica de marginais porque se lhes concede o direito de exercerem uma função que noutras circunstâncias seria condenável - o direito à força bruta.

O jovem assassinado - não há outra palavra - podia ser o filho, o irmão, o marido, o amigo de qualquer um de nós. Podia ser mesmo qualquer um de nós. Trata-se em qualquer dos casos de uma vida humana barbaramente aniquilada. Por pura bestialidade.
Como é possível não gritar a revolta, a indignação, a raiva? Como é possível fazer de conta que não é nada connosco?
Ontem, esta morte matada não teve 'honras' de primeira página em lugar nenhum. Nenhum ministro veio a público falar do assunto, ninguém - tanto quanto pude verificar - se deu ao trabalho de vir exigir responsabilidades que não se esgotam na prisão dos criminosos.

É um silêncio pesado, um silêncio de morte. É um silêncio cúmplice. — Anabela Fino


«Avante!» Nº 1287 - 30.Julho.1998