TVisto
O cante e o drama
Por Correia da Fonseca
Há muitos, muitos meses que assisto com interesse e prazer a «Portugal Português», na TVI. Chegou a coisa ao ponto de me ter surpreendido a reflectir que «Portugal Português» seria razão bastante para justificar a sobrevivência da TVI: exagero meu, decerto, mas também indício de que a rubrica tem méritos. Não é difícil imputar-lhe pendores passadistas, talvez retrógrados, porventura reaccionários, mas nem isso me impede de ser seu espectador assíduo. E grato. Por vir lembrar-me que nem tudo no meu País, na área musical ou outra tende a ser «Made in Portugal». Por encher-me os olhos com imagens lindas e, na generalidade dos casos, com gente autêntica. Por injectar-me uma esperança difusa que não sei ao certo de onde vem e para onde me impele, mas claramente sinto que me merece. E é claro que o que me acontece também acontecerá a muitos outros telespectadores, embora não tantos que coloquem «Portugal Português» nas tabelas dos dez ou vinte programas mais vistos. Não me importo: sei que mesmo uma audiência de 2 ou 3% corresponde a um Estádio da Luz recheado como nos bons tempos. Até talvez goste: sei que entre os «top» estaria «Portugal Português» em muito más companhias.
E certo que quase
sempre «Portugal Português» passa em total silêncio pelo
País que é português também pelas penúrias, as angústias,
as servidões, e essa omissão fica a mordiscar-me como um
remorso de pecado meu. Então, contra mim próprio argumento que
«Portugal Português» está a tentar servir-nos um país
idílico e a fazer esquecer-nos um outro. Mas, como sempre
acontece quando queremos mesmo gostar, de alguém ou de um
simples programa de televisão, arranjo desculpas. Digo-me que
«Portugal Português» não pode ser obrigado a fazer
levantamentos sociais e/ou políticos, sobretudo desde que esses
aspectos sejam adequadamente cobertos por outras rubricas da
mesma estação. Perguntar-se-á: «Mas onde estão essas?» Não
estão, isto é, não existem na TVI nem, com um carácter
sistemático, na generalidade da TV portuguesa. Mas talvez não
se deva pedir contas a «Portugal Português» por essa ausência
que, sendo também sua, não o é em primeira linha.
Apesar disto, foi com particular gosto que assisti a um certo
momento da última emissão de «Portugal Português». O
programa foi especialmente consagrado à música do Alentejo,
sobretudo ao cante alentejano, e em estúdio estavam, em conversa
com Francisco Máximo, Vitorino e Francisco Torrão. A dada
altura, falou-se desse enigma por resolver, e de resolução
duvidosamente prioritária, que é a determinação das origens
do cante: foram referidos a herança árabe, a influência
beiroa, o canto gregoriano em tempos praticado em centros
monásticos da região, a eventual transfusão veiculada por
trabalhadores sazonais vindos da Extremadura espanhola ou mesmo
idos do Alentejo para o lado de lá da fronteira. Estes últimos,
salientou Vitorino, partindo a trabalhar apenas «pelo grão»,
isto é, sem receberem salário, só em troca do acesso a uma
alimentação mínima que os salvasse da fome.
De súbito
Por mim, ouvi aquilo
e foi como se uma outra luz iluminasse o estúdio e viesse
revelar novas e mais marcadas cores. Até então, estávamos
todos ali, eles a falarem, nós a ouvirmos, uns e outros a
discorrermos quase academicamente acerca das origens de uni
género musical. E, de súbito, aquela alusão de Vitorino vinha
apontar, exibir, as raízes dramáticas de um quotidiano de onde
emergia a música, sem dúvida, mas também a difícil
sobrevivência sempre paredes meias com a angústia, por vezes
desembocando no desespero do suicídio. É certo que já víramos
grupos corais com aquela cerrada formação humana que é como um
quadrado a resistir contra tudo no decurso de um combate que é
invisível, mas está «lá». Desta vez, porém, era a palavra
explícita, o cumprimento de um dever que era homenagem a
anónimas tragédias, a seculares suores nunca pagos. E era,
pareceu-me, «Portugal Português» a completar-se com a
dimensão que quase sempre lhe falta.
Depois disto, a conversa veio a encaminhar-se para outras zonas
que nem sempre se ativeram aos aspectos estritamente musicais, e
ainda bem, até porque, como se saberá, nada na música é
«estritamente musical», por muito que o pareça. Tratou-se,
designadamente, de perscrutar o futuro e de avaliar as
dificuldades de sobrevivência do cante alentejano. Já tinha
sido dito que começam a ser raros, nos grupos corais, os
elementos com menos de sessenta anos e que, por consequência, é
preciso motivar os jovens para que recebam um património que
não pode perder-se. Falou-se então do papel que cabe ao Estado
na preservação dessa herança e, de caminho, no alheamento do
poder central em relação ao Alentejo. Foi ainda Vitorino quem
aludiu a isso; Francisco Máximo não pareceu entender, Francisco
Torrão não interveio nesse momento. Mas ninguém tinha lembrado
que, no Alentejo de hoje, talvez milhares de jovens tenham outras
preocupações: por exemplo, a de partirem para lugares onde não
lhes seja negado o direito ao trabalho. E também ninguém
lembrou que quando contra uma região são disparadas saraivadas
de anedotas pode não ficar muito espaço para cuidados
ministeriais.