Virgínia Moura:
Esperança à lusitana


Virgínia Moura visitou Cuba pela primeira vez aos 82 anos, pouco antes da sua morte. Entrevistada na ocasião por Marta Gonzalez Sojo para a revista 'Bohemia', nunca chegaria a saber do impacto causado na pequena ilha que tanto a encantou. A morte ceifou-a uma semana antes da publicação da entrevista. É esse testemunho que aqui deixamos, numa sentida homenagem póstuma a Virgínia Moura, a mulher que se transformou num símbolo de combatividade e dignidade da mulher portuguesa.


Esta senhora tem algo de especial. Talvez esse toque de que falam os filósofos do quotidiano, esse dom que não se apaga com os anos, nem sequer com as amarguras que vão marcando as pessoas através do tempo. Uma beleza que flui do interior e faz brilhar quem a possui.
Carismática? Sem dúvida. Esta portuguesa de 82 anos impressiona desde que começa a conversar, não só pelo que diz, mas também pela forma como envolve as suas palavras com doçura cheia de paixão.

Diz um amigo que lhe é próximo que na sua juventude foi uma mulher muito bela, que chocava com a burguesia do começo dos anos 30 porque violava padrões pela sua forma de pensar e agir. Vestia calças, na altura, o que era pouco usual para as mulheres naquela época. Graduou-se em engenharia civil, sendo a primeira mulher a obter esse título universitário, tanto no Porto, sua terra natal, como no seu país.
E acrescenta ainda o amigo: foi uma destacada militante antifascista e anticolonialista; há 60 anos que luta pela paz, pela emancipação da mulher. E diz a concluir: é um símbolo da combatividade e da dignidade da mulher portuguesa.
Agora de visita a Cuba pela primeira vez, deixar passar a oportunidade de conhecer Virgínia Moura seria imperdoável. As suas opiniões, ditas com esse calor que se sente até aos ossos, ensinam-nos que os pensamentos nunca adormecem... nem tão-pouco o coração.

- Desde muito jovem, quando era estudante, comecei a preocupar-me com os problemas do meu País. Militei numa organização chamada 'Socorro Vermelho', em solidariedade com os espanhóis vítimas de Franco.
Quando Portugal era governado por um fascista, Salazar, os estudantes reagiram contra essa política e lutaram com todas as suas forças; também nessa luta estive presente.


Casamento de ideais

Qualquer coisa lhe ilumina o rosto e exprime-se num sorriso de satisfação:

— Aos 18 anos encontrei um homem chamado Lobão Vital. Foi especial para mim esse estudante de arquitectura de então, tinha os mesmos ideais que eu. Amámo-nos profundamente, formámos um par com identidade de sentimentos, foi um duplo casamento. O lamentável é que não tivesse havido filhos, porque os perdia, como estava sempre de um lado para o outro tive vários abortos espontâneos. Infelizmente, após 42 anos de união, o meu companheiro morreu de um enfarte, há cerca de vinte anos. Foi doloroso para mim, mas era preciso continuar.
Juntos tivemos uma participação muito activa na vida portuguesa. Essa nossa posição tornava quase impossível conseguirmos obter trabalho, já depois de licenciados, em qualquer sector profissional relacionado com o Estado. A PIDE (polícia política portuguesa) seguia-nos constantemente para tentar descobrir o que fazíamos no terreno político.
A nossa luta desenrolava-se dentro dos limites permitidos pela Constituição que, apesar de fascista, tinha de simular um mínimo de respeito pelas liberdades. Para o governo era difícil manter-nos presos por muito tempo, mas mesmo assim sofremos nas prisões da ditadura. O nosso compromisso era com o povo, com as suas aspirações à liberdade e ao progresso.
Fizémos o que era possível até ao triunfo revolucionário do 25 de Abril de 1974. Nesse dia vimos concretizada de alguma forma a primeira etapa da nossa luta. Foi um dia de grande felicidade.


Virgínia prossegue, lembrando épocas anteriores:

— O colonialismo foi uma vergonha para os portugueses conscientes. A luta pela libertação das colónias portuguesas teve uma importância muito grande na tomada de consciência, sobretudo nos militares, no corpo de oficiais, na criação de condições para o processo de ruptura que levou à Revolução de Abril.
Acabaram por ser os militares, incluindo alguns que não queriam ir para a guerra, que tornaram mais fácil a Revolução através de uma vanguarda militar progressista (o Movimento das Forças Armadas, MFA). O clamor do povo português ao iniciar-se a Revolução dos Cravos expressou-se numa exigência popular: fim à guerra colonial.
Enquanto foi primeiro-ministro o general Vasco Gonçalves fizeram-se coisas muito belas. Portugal assumiu uma posição de que nos podemos orgulher. Os grandes capitalistas e latifundiários fugiram para o Brasil, mas infelizmente todos regressaram depois. Desde então perdemos com a contra-revolução de direita muitas das conquistas do 25 de Abril.
Para tirar e destruir o que nos resta já reviram várias vezes a Constituição, que era muito progressista. A onda de privatizações, a destruição da reforma agrária e de outras conquistas feriram-nos muito. Todo o conjunto de êxitos revolucionários foi muito abalado.
Apesar de tudo, continuamos a ter uma forte representação comunista no Parlamento e muitos municípios são governados por comunistas, camaradas nossos, incluindo a maior parte da metade Sul do País. A nossa influência continua muito importante, e afirmo sem estar a exagerar que a nossa actuação partidária foi e é um modelo de dignidade, coerência e resistência.


Momentos de impacto

— Para muitos intelectuais portugueses, a chamada queda do Muro de Berlim foi recebida como uma prova de que o socialismo não era possível. Inicialmente houve desorientação. Havia uma experiência socialista e o derrubamento dessa experiência provocou muitos problemas. Houve quem se confundisse e alguns saíram do Partido Comunista. Também houve oportunismo. Os que eram sérios acabaram por compreender e regressar. O Partido desenvolveu uma política que me pareceu adequada. Foi uma altura em que eu, apesar de reformada, trabalhei muito. Era necessário participar activamente, intervir, demonstrar que Portugal era Portugal e a União Soviética uma realidade muito diferente.
A propósito, verifico com alegria que em Cuba o socialismo não é uma utopia. Constrói-se aqui um socialismo que não está destinado a acabar, mas sim a aperfeiçoar-se com a criação de melhores condições de vida para o povo.


Sobre alguns temas da actualidade europeia Virgínia refere:

— Há algum tempo delineou-se o que é conhecido como o Tratado de Maastricht, o qual, na minha opinião, é prejudicial para países como Portugal. Tínhamos uma grande produção de vinhos de qualidade e a União Europeia (UE) está a pagar aos agricultores para arrancarem as vinhas, de forma a poderem vender em Portugal vinhos franceses ou italianos. Não estou contra a cooperação com outros países no âmbito da UE, mas estas políticas do governo do primeiro-ministro Guterres são desastrosas. Respeitamos os tratados, não queremos isolar-nos, mas gostaríamos que os nossos interesses tivessem sido defendidos. A prática demonstra que nos fundimos numa dependência.


E acrescenta em relação a outros problemas sociais:

— Estão a suceder muitas coisas desagradáveis. Persistem os fenómenos sociais como a droga, a xenofobia, a miséria, a violência, as despesas absurdas em múltiplos sectores deixam as pessoas assustadas e apreensivas.
O problema da prostituição, por exemplo, e não me refiro já à prostituição de adultos, mas a essa coisa terrível que leva alguns a procurar crianças nas ruas ou a levá-las para os seus automóveis e, a troco de 10 ou 15 dólares, as destroem. Essa onda de pedofilia a que se assiste é horrível. É também terrível verificar como a xenofobia ataca o mundo contemporâneo.
«Por outro lado, a sociedade de consumo actual angustia muito as pessoas e tem as suas particularidades. Por exemplo, o telefone celular é útil para muita gente, mas não serve para os que não necessitam dele e que apesar disso querem comprá-lo porque se tornou num instrumento de estatuto social. Isto é um exemplo da confusão que se instala na cabeça de certas pessoas. São questões complexas.
Apesar de tudo o que nos rodeia, espero muito da juventude consciente. Confio em que, com o tempo, triunfará o que é positivo e que acabem por se impor os que pensam e vêem as coisas de maneira diferente, porque os males do capitalismo, este mundo de ricos muito ricos e de pobres muito pobres, não pode manter-se indefinidamente, não é possível. Sempre desejei o que é bom para a humanidade, e continuo a desejá-lo, mantenho as minhas ilusões..


«Avante!» Nº 1289 - 13.Agosto.1998