Conspiração contra a RD do Congo?

Por Albano Nunes
Membro do Secretariado do CC do PCP


Escrever sobre a actual conjuntura na República Democrática do Congo, o ex-Zaire de Mobutu, encerra sérios riscos de desacerto. A situação, complexa e contraditória, é particularmente confusa tanto no terreno político como militar. São bem mais as perguntas que as respostas. Mas a importância do que está em jogo não deixa alternativa.

Que precipitou os acontecimentos? Uma corajosa afirmação de soberania como afirma o governo ou o nepotismo e tribalismo de que Kabila é acusado? Há forças do Ruanda e do Uganda a conduzir a "revolta militar" (o que de resto um ministro francês abertamente reconheceu) ou trata-se simplesmente de uma bola de neve despoletada pela reacção dos banyamulenge a promessas incumpridas e injustas perseguições? Gerou-se de facto uma situação insegurança e de perigo generalizado para os estrangeiros residentes na RDC ou trata-se essencialmente de uma clássica operação alarmista que visa encorajar os revoltosos e provocar a desejada debandada do novissimo exército democrático e a desagregação do actual poder? Kabila fugiu? Prepara a independência do Katanga qual vulgar Tchombé dos anos 60? Negoceia secretamente com os revoltosos? Ou desmultiplica-se no plano diplomático (vidé visita a Cuba, participação na cimeira de Victoria Falls da iniciativa de Robert Mugabe, reunião de 16 de Agosto em Luanda dos chefes de Estado de Angola, Namíbia e RDCongo...) para encontrar soluções que não sejam aquilo que alguns chamam " o derrube do herdeiro de Mobutu"? Que rosto têm os opositores, que objectivos, que programa?

Muitas outras perguntas e questões poderiam colocar-se às quais só o tempo dará resposta. Entretanto, considerando as lições da história, é inteiramente legítimo perguntar se, independentemente de erros colectivos e individuais a justificar justo descontentamento e reprovação, não estaremos perante uma autêntica conspiração contra a RDP.

Quando em 19 de Maio de 1997 as forças da "Aliança das Forças Democráticas para a Libertação do Congo - Zaire " entraram em Kinshasa e vibraram o golpe de misericórdia na ditadura de Mobutu Sese Seko, assistiu-se às mais surpreendentes e descompostas análises por parte dos escribas do "pensamento único" ao serviço da "nova ordem" imperialista. Estruturalmente incapazes de discernir o amplo leque de contradições em jogo, e temerosos do contágio do " fenómeno congolês" empenharam-se em minimizar e iludir as causas profundas que tornaram possível o avanço imparável e o entusiástico apoio popular às forças conduzidas por Laurent -Desiré Kabila. Foi então avançada a tese de que tudo aconteceu porque (pelo menos a partir de certa altura) os EUA deixaram e quiseram. E reduzindo a uma caricatura aquilo que é evidente realidade - as rivalidades e contradições inter-imperialistas e a luta crescente por esferas de domínio e influência - apresentaram a derrota do "leopardo" , esse guardião avançado dos interesses da "civilização Ocidental" em África, como simples resultado de um jogo de xadrez em que, deslocando algumas pedras bem colocadas na região, e em primeiro lugar o Uganda, os EUA deram um xeque-mate à França (e à União Europeia). Laurent Kabila foi mesmo reduzido em muitos escritos á condição de um vicioso "homem de palha" dos americanos. Tudo muito "superestrutural", muito distante da contraditória e dinâmica realidade socio-económica. Tudo muito personalizado em "heróis " e "homens de palha", quase nada quanto ao decisivo papel dos grandes grupos humanos, das classes sociais, das massas populares. Tudo fatal como o destino : só se move o que as classes dominantes permitem que se mova e que os EUA queiram que se mova. Guerra aberta à perigosa ilusão de que a luta progressista e revolucionária alcancará resultados e que, tarde ou cedo, a "vitória é certa". Sim, que acontecerá à "nova ordem", à globalização neoliberal imperialista, se as massas - hoje no Congo, amanhã na Indonésia ou Birmãnia e depois na Nigéria, no Brasil ou qualquer outro país- se convencerem que podem decidir o seu próprio destino?

Nesta versão da "vitória americana" no Congo Kinshasa não haveria algum grão de verdade? Não seremos nós a dizer que não. De qualquer modo o que seguramente havia era a intenção dos EUA e seus aliados na região, de influenciar, controlar e recuperar o processo de transformação pós-mobutista. No quadro então existente - de profunda crise económica e financeira, de desastre e desespero social, de inaudita corrupção e caos nas estruturas administrativas do país, de evidentes debilidades políticas e organizativas das forças que conquistaram o poder - as esperanças de "mudar de cavalo" não eram desprovidas de fundamento. Sobretudo se não se deixasse estabilizar o novo poder no plano interno e se impedisse, no plano externo, a reconstrução das relações económicas, políticas e diplomáticas congolesas. Contudo, as últimas notícias parecem indicar que o imperialismo, e em particular os EUA, não tendo alcançado os resultados pretendidos, decidiram intervir em força na desestabilização e no derrube do poder actual em Kinshasa. É aliás curioso observar que os fios da conspiração - é ver a imprensa mais recente, nomeadamente o "Liberation" francês ou o "Economist" - passam por Paris, Bruxelas, Washington , assim como pelo Ruanda e o Uganda de Yori Museweni, aparentemente o principal aliado operacional norte-americano nos Grandes Lagos. Num compromisso franco - norte americano que envolve também os destroços do mobutismo, tanto no plano político (integração na coligação de oposição recentemente criada em Paris) como no terreno militar com antigos contingentes das Forças Armadas Zairenses a incorporarem-se na ofensiva. De notar ainda a deslocação de navios de guerra dos EUA para a região com o pretexto de evacuação de cidadãos norte - americanos, num gravíssimo precedente.

O que se passa na RD do Congo é inseparável do agravamento da situação em Angola provocada pela acção criminosa da UNITA e noutros países do continente, incluindo a Guiné-Bissau. A África está em convulsão, da Argélia á África do Sul , sem esquecer a situação na Nigéria gigante (aspirando á posição de gendarme africano do imperialismo) ou os inesperados atentados terroristas no Quénia e na Tanzânia em Embaixadas norte - americanas. Durante muitos anos falou-se do "continente esquecido" e do "desinteresse dos EUA" pelo continente. Aí temos hoje o real significado de tais apreciações: " Esquecido" para que nos esquecêssemos nós dele, ele que havia sido a dado momento considerado o campo principal de " confronto Leste - Oeste" . "Desinteresse dos EUA" para que o "seu regresso a África " fosse saudado como uma boa coisa e não como aquilo que realmente é: expressão da natureza exploradora, opressora e agressiva do imperialismo, e da sua pretensão em abocanhar as imensas riquezas do Congo e da África Austral.


«Avante!» Nº 1290 - 20.Agosto.1998