Uma
sociedade petrificada
sem memória nem alegria
Cheguei a
Santiago numa noite quente. El Niño também
ali golpeou o clima. O fim do Outono lembrava um Verão
português. Não recordo ter visto tão pouca neve na Cordilheira
na mesma época.
O regresso ao Chile desencadeia sempre em mim uma torrente de
emoções. Perguntava-me que país iria reencontrar.
Desta vez voltava para rever velhos amigos.
Saí a pé do hotel,
caminhando por ruas quase desertas do centro antigo da cidade.
Ao desembocar na Alameda, bem iluminada, o cenário era outro.
Apesar da hora tardia, havia muita gente nos cafés e
restaurantes e movimentando-se em torno das bancas dos
ambulantes.
Tudo tinha um toque de familiaridade, mas tudo entrava em mim
fazendo estragos. A cidade pareceu-me suja e triste. Senti-me um
estranho entre velhos edifícios íntimos e degradados.
Foi decepcionante a retomada de contacto.
Trazia comigo as impressões da última visita, em 1989, quando o candidato Pinochet perdeu as eleições numa jornada que findou em festa inesquecível. O panorama social e político apresentava-se então muito confuso. O simples facto de o presidente eleito, Patricio Aylwin, ser um político muito conservador da Democracia Cristã justificava apreensões, mas a atmosfera era naqueles dias de grandes esperanças. O povo manifestara-se contra a ditadura em gigantescos comícios e desafiara a repressão nas ruas. Lembro-me de ter corrido pela Alameda para evitar uma carga dos carabineros e o fumo dos gases lacrimogéneos. O desenvolvimento da história não confirmou, entretanto, as esperanças que brotavam no ocaso da ditadura.
A Santiago da viragem do milénio apareceu-me agora como a capital de um país robotizado, onde as pessoas agem como máquinas programadas. Tive por vezes a sensação de me encontar mergulhado no mundo desumanizado das utopias de Huxley e Orwell.
O nível da poluição ambiental, alarmante, contribuía para ensombrecer o panorama depressivo do Chile no limiar do Inverno. Quando deixei Santiago, o Governo acabava de impor o estado de emergência. Os índices de toxidade da atmosfera eram assustadores. As escolas foram fechadas e quase metade dos carros particulares teve o acesso ao centro da cidade proibido.
O quadro era de pesadelo.
O salário mínimo
foi reajustado durante a minha breve permanência. Após
prolongadas negociações, a Central de Trabalhadores a
CUT, de gloriosas tradições aceitou as exigências do
governo da Consertación e assinou uma espécie de pacto social.
A pirueta dos dirigentes sindicais do PS e da Democracia Cristã
levou à capitulação. Conformaram-se com tudo o que dias antes
afirmavam ser absolutamente inaceitável. O salário mínimo
subiu de 71 400 pesos para 80 500 (o dólar vale 452
pesos), ou seja, o equivalente a 32 contos.
O futuro próximo foi minuciosamente fixado. Em Janeiro de 1999,
o salário será de 90 500 pesos e no ano 2000 atingirá
100 000 pesos. Não haverá qualquer revisão até lá.
Segundo o semanário «El Siglo» (21/5/98) o mínimo
indispensável para cobrir as necessidades básicas deveria ser
de 185 000 pesos...
O Partido Comunista do Chile considerou chocante e indecoroso o
acordo, responsabilizando por ele os dirigentes sindicais da
Concertación. A direita, naturalmente, festejou o resultado da
negociação, embora tenha considerado excessivo o novo
salário mínimo. Isto num país onde o custo de vida é quase
igual ao de Portugal.
O Estado chileno,
adepto e defensor de um mercado sacralizado, cumpre com zelo a
sua missão de intermediário do patronato cujos interesses
protege.
Mas quando o Executivo, noutras áreas, incomoda, a direita que,
através do Senado, controla o Congresso, intervém de modo a
marcar com clareza os limites do poder tutelado do Governo da
Concertación.
Acompanhei em Santiago o debate provocado pela recusa de
nomeação de um juiz do Supremo proposto pelo presidente Frei.
OSenado vetou-lhe o nome. Motivo: Milton Juica, magistrado de
currículo irrepreensível, interviera como juiz na elaboração
de sentenças sobre crimes da ditadura. Figurava na lista negra
da direita que aproveitou agora a oportunidade para uma vingança
mesquinha.
Com a cumplicidade das grandes
cadeias de televisão dos EUA e da Europa, o governo de Eduardo
Frei conseguiu transmitir ao mundo a imagem de um regime
democrático no qual as instituições funcionam hoje
harmoniosamente.
É uma imagem que distorce a realidade. Dezenas de militares
responsáveis por crimes contra a humanidade são considerados
intocáveis. A Lei da Amnistia coloca-os fora da acção da
Justiça. Pinochet advertiu, aliás, mais de uma vez, que não
admitiria que tocassem num cabelo dos seus homens de mão.
Achados recentes de cemitérios clandestinos próximo do antigo
campo de concentração de Pisagua confirmaram que numerosos
patriotas foram ali sumariamente executados. De uma lista
elaborada pelo historiador León Gomez constam os nomes de 37
militares implicados nesses crimes. Mas nada lhes aconteceu.
Na chamada Colonia Dignidad, fundada por ex-nazistas que fugiram
do III Reich no final da Guerra Mundial, foram encontradas em
fossas comuns ossadas de patriotas chilenos massacrados pelos
dirigentes alemães desse lugar de horrores. O escândalo da
Colonia Dignidad assumiu proporções mundiais. Mas esses
carrascos nazis, tratados como aliados por Pinochet, continuam em
liberdade.
A Concertación, que
reúne quatro grandes partidos Democracia Cristã, Partido
Socialista, Partido por la Democracia e Partido Radical
acreditou que o acordo que a viabilizou se poderia prolongar pelo
menos até ao ano 2006.
Essa ambição tornou-se, de repente, ultrapassada. O lançamento
da candidatura à Presidência de Ricardo Lagos, dirigente
máximo do Partido por la Democracia e ministro das Obras
Públicas, desagradou à Democracia Cristã. Esta decidiu
apresentar o senador Andrés Zaldivar. O mal-estar entre radicais
e socialistas é também transparente.
Sentindo a coligação do governo abalada, a direita apressou-se
a designar o seu candidato, Joaquim Lavin, um multimilionário
que ocupa a presidência da Câmara de Las Condes, o município
mais rico da grande Santiago e do Chile.
O Parido Comunista não tem representantes no Congresso. Muita
gente que conhece mal os meandros da política chilena estranha
essa ausência. Ela resulta do carácter profundamente
antidemocrático da lei eleitoral imposta por Pinochet com a
aceitação dos actuais partidos do Governo. Somente as forças
políticas que ultrapassam a nível nacional os 5% dos votos
emitidos têm direito a estarem representadas no Congresso. Como
essa meta não foi atingida pelo PC do Chile, os votos comunistas
foram considerados votos perdidos.
Ocorre que o PC do Chile, contrariamente a outras organizações
tradicionais, não se apresentou em coligação com qualquer
partido importante. Pagou um alto preço pelo seu isolamento,
inevitável numa fase histórica em que a fidelidade aos
princípios não lhe deixava alternativa.
Em Santiago, Gladys Marin, a secretária-geral do PCCH, obteve
uma das mais elevadas votações. Mas como a barreira dos 5% não
foi superada no conjunto do país, Gladys não entrou no Senado.
Candidatos com votações muito inferiores foram eleitos pela
Concertación e pela direita.
Entretanto, nas últimas eleições municipais, o PCCH alcançou
significativos êxitos e a sua influência entre a juventude e a
classe operária tem crescido de ano para ano.
Obviamente, o PCCH, como muitos outros partidos comunistas da
América Latina, não recuperou a posição que durante décadas
ocupou. Não cabe aqui analisar a problemática da complexa crise
que o levou a uma profunda reflexão, crise agravada pelos
efeitos continentais e mundiais da desagregação da URSS. Mas é
significativo que nas recentes eleições realizadas nas mais
importantes universidades, os candidatos apresentados pelos
comunistas tenham conquistado a maioria das direcções das
associações de estudantes.
É precisamente da juventude que, num panorama globalmente
negativo, sobe, ainda nevoenta, uma luz de esperança.
O Chile não é um
país endividado até à medula como o Brasil. A sua agricultura,
orientada para a exportação, é uma das mais dinâmicas do
Continente, e o PIB cresce anualmente, como salientei em artigo
anterior, a uma taxa média de 6%.
Repetindo slogans sobre a modernidade chilena, essa gente
simula esquecer que o Estado Mínimo pinochetiano destruiu a
Segurança Social e o ensino público, empobreceu dramaticamente
as classes médias e desumanizou as relações humanas ao tentar
reduzir os trabalhadores a máquinas robotizadas. Precisamente
por isso, fere mais o contraste entre a elegância do Bairro
Alto e a pobreza crescente das áreas do cinturão operário
da Grande Santiago.
A aristocracia do dinheiro chilena, educada desde o século XIX
na tradição britânica, tem o bom gosto que falta à
brasileira. Não conheço centros comerciais tão belos e
harmoniosos como os de Santiago. Em Las Condes, as novas zonas
residenciais, as grandes lojas, os restaurantes e bares, os
bancos dão ao forasteiro a imagem de outro mundo. Ali
penetra-se no Chile do privilégio, numa cidade paradisíaca onde
cada solução foi concebida de modo a assegurar aos moradores
uma qualidade de vida superior, que responda às aspirações e
ao egoísmo de uma casta senhorial. Embora diferente, aquilo
fez-me pensar no conjunto de La Defense, em Paris, e em
alguns bairros dos subúrbios de Washington, reservados à elite
do poder.
A repartição da
riqueza é tão injusta como no Brasil. Mas os efeitos da
selvajeria neoliberal são mais devastadores no tecido social. Os
trabalhadores chilenos tinham realizado, em décadas de luta,
conquistas que faziam da sua classe operária uma das mais
avançadas do Continente. O analfabetismo fora praticamente
eliminado antes da Segunda Guerra Mundial pelo governo da Frente
Popular, de Pedro Aguirre Cerda.
A consciência do que se perdeu é, portanto, mais dolorosa. E o
que se perdeu não é quantificável, não tem preço. O
espírito de luta, por exemplo.
Ao deambular, sem rumo definido, por tradicionais bairros
operários, pelas ruas degradadas do centro histórico de
Santiago e pelas avenidas ajardinadas das encostas da Cordilheira
não podia sem um sentimento de saudade e amargura recordar a
atmosfera de Santiago nos dias efervescentes da Unidade Popular.
Hoje, a passividade das massas é uma realidade. Uma oligarquia
britanizada, arrogante, olha para o povo como se este fosse a
fauna de um parque zoológico produzida para o servir.
A alegria que o brasileiro, através de todos os vendavais que
atingem o país, preserva desapareceu do Chile. Na terra de
Lautaro e Recabarren o pinochetismo sem Pinochet aplica, sem
encontrar grandes resistências, um projecto económico e social
que aniquila o melhor da condição humana. O neoliberalismo
ortodoxo desfibrou o Chile. Grande parte da nação perdeu a
memória.
A televisão uma chusma de canais privados consegue
ser pior do que a brasileira. Incentiva o consumismo, divulga os
produtos da subcultura norte-americana de exportação e
glorifica os novos heróis nacionais: um tenista e dois
futebolistas. Como difusora de ideologia, é muito modesto o seu
papel. Essa tarefa, no Chile, cabe sobretudo ao diário "El
Mercúrio", o grande jornal de direita fundado pela família
Edwards. Parece uma versão actualizada, perversa, do
"Times" londrino do século XIX. Muito bem redigido, é
o mais eficaz instrumento de defesa do projecto neoliberal. O seu
moralismo farisaico não o impede, porém, de dedicar diariamente
páginas às actividades mundanas da classe senhorial.
Como reage a intelligentsia ao pinochetismo sem Pinochet?
Mal. A atitude mais comum entre os intelectuais é o conformismo.
A capitulação do PS o partido de Allende é por
si só elucidativa dos fenómenos camaleónicos que se
desenvolveram no mundo político.
Nas universidades particulares, o panorama também não é
animador. Encontros que mantive com sociólogos e historiadores
foram decepcionantes. De todos ouvi críticas ao actual regime e
à estratégia da Concertación. Diziam-se à esquerda do Partido
Comunista, mas questionados sobre a ausência de uma alternativa
ao neoliberalismo, deixavam aflorar um anticomunismo endémico
nas críticas feitas ao partido de Gladys Marin. Uma teorização
estéril, mais voltada para o jogo político travado na área do
poder do que para a contestação deste através de novas formas
de luta, reflectia uma subestimação real da participação
popular.
Sou, por
temperamento e vocação, optimista. Mas o compromisso com a
verdade, cada vez mais necessário nos tempos que correm, envolve
para mim a recusa de atenuar as cores sombrias do quadro
político e social chileno.
Na prespectiva do futuro próximo, a situação no Chile é mais
desesperadora que a do Brasil. O país não está à beira de uma
crise económica e financeira. Mas o povo perdeu a memória, a
alegria e a confiança. No caldeirão brasileiro movimentam-se os
Sem Terra, e o debate de ideias, intenso e inovador,
desenvolve-se numa atmosfera de esperança.
O desastre chileno aparece-me, entretanto, carregado de
ensinamentos úteis. O pinochetismo sem Pinochet faz do Chile um
laboratório para todos quantos, rejeitando o modelo neoliberal e
as suas consequências desumanizantes, discutem alternativas no
combate ao pensamento único.
O preço pago pelos compromissos dos partidos da Concertación
justifica uma reflexão muito profunda não apenas sobre a
política de alianças do quadrante social-democrata, mas também
sobre os acordos tácticos que implicam concessões ideológicas
de fundo, por vezes de difícil previsão.
O problema que se colocava no Chile pós-ditadura não era o de
recusar reformas graduais com o argumento de que seriam
insuficientes. Tratava-se, sim, de examinar o conteúdo de cada
uma das reformas possíveis e de rejeitar todas as que serviam
exclusivamente a estratégia neoliberal. Ora as reformas
avalizadas por antigos partidos da Unidade Popular responderam
quase sempre aos interesses da economia capitalista.
Enfraqueceram mais o movimento popular em vez de o fortalecer.
O Chile da viragem do milénio alerta-nos para a necessidade de
não confundir nunca a linguagem do diálogo e a política de
alianças com cedências inseparáveis de uma confiança
ilusória no funcionamento do jogo institucional e da falsa
democracia representativa.
O balanço da restauração democrática no Chile é
dramaticamente negativo. O Partido de Salvador Allende, hoje
comodamente instalado no Governo, adaptou-se às regras do jogo,
renunciando a lutar pela implantação de novas regras do jogo. O
povo chileno é a grande vítima da capitulação de uma grande
parte da antiga esquerda.