OZONO
Um buraco no desenvolvimento?

Por Leandro Martins


Numa questão delicada e problemática como a da degradação ambiental, cada notícia - normalmente carregada de ameaças - constitui nova apreensão a acrescentar a outras que se vêm acumulando nestes últimos anos do século. Este novo alerta, resultante do calor excepcional do Verão, com um mês de Julho a registar as temperaturas mais elevadas desde há 120 anos, é mais uma acha a lançar na fogueira do receio de que o planeta já não comporte mais este tipo de desenvolvimento industrial baseado no esbanjar das matérias primas, no consumo desmedido de fontes de energia não renováveis, na poluição resultante da queima de combustíveis fósseis e do efeito de estufa correspondente, na produção de cada vez mais detritos não recicláveis. No entanto, mesmo ao deparar com notícias que lhe dão conta de incêndios gigantescos e de inundações apocalípticas, de espécies animais que desaparecem a cada dia que passa, de cidades perigosamente envoltas em gases e de aumentos excepcionais das temperaturas médias, o cidadão comum, quando não directamente atingido por uma desgraça, encara com cepticismo os alarmes. É que alguns dos que lançam os alertas são os mesmos que o incitam ao consumismo; os donos das riquezas são os patrões das misérias...

Desta vez, os alertas relacionam-se com dois fenómenos. O aumento das temperaturas registadas no hemisfério norte do planeta (não será por acaso que aqui se registam, mas também não será por acaso que se assinalam de modo alarmista) e, por outro lado, o aumento do teor de ozono na atmosfera.
Os dois fenómenos relacionam-se. O calor é apontado como responsável, sobretudo nas cidades e grandes aglomerações urbanas, pela decomposição, a nível do solo, dos gases poluentes e pela consequente «produção» do famoso gás. Menos informado acerca destas coisas da química, o cidadão comum há-de perguntar-se se afinal não é um bem esta «produção» de um gás que tanta falta fará para tapar o «buraco» de que muito se vem falando desde os anos 80 e que levou à reconversão de numerosas indústrias, nomeadamente no sector da refrigeração, que usava - e ainda usa - um outro gás, o FC, cuja expansão na atmosfera estará na origem do não menos famoso buraco.


Ozono a mais?

Afinal o que é o ozono? E para que «serve?» Azul diz-se que é, e o leitor terá apenas dado conta dele pelo cheiro característico se tiver andado nos carrinhos da feira ou se se lembrar dos «eléctricos» da Carris. Trata-se afinal de uma «versão» alotrópica do oxigénio, isto é, enquanto o oxigénio surge em moléculas de 2 átomos (O2), o ozono possui três átomos (O3). As propriedades de cada um são contudo diferentes. O oxigénio é essencial à vida e entra na composição da água; o ozono, sendo um gás poluente para quem o respira, «serve», no entanto, para «tapar buracos», isto é, cria em redor do planeta e à altitude bastante, uma protecção contra os raios ultravioleta, aqueles que não aconselham a exposição ao sol nestes dias de praia. Os estragos originados por esta «produção» anormal de ozono, causada pelo intenso calor e pela poluição automóvel, são já assinaláveis.
Em França, por exemplo, onde se mantêm estatísticas e postos de medição de emissão de gases, concluía-se, na semana passada, que, apesar de haver diminuído o tráfego automóvel (não só em razão da época do ano mas por haverem sido tomadas medidas visando a redução da circulação e da velocidade) uma série de cidades tinham atingido o nível 2 do procedimento de alerta no que respeita à poluição. Paris, mas também Grenoble, Lião, Bordéus, Toulouse, Estrasburgo, Nancy, Metz, Le Havre, Marselha, Nice e Cannes registavam, a par de uma intensa onda de calor, uma importante quantidade de ozono. A inquietação face aos números registados tem uma razão forte. É que apontam para um aprofundamento da degradação da qualidade do ar que se respira. O nível atingido, segundo os especialistas, faz perigar a saúde. E nomeadamente põe em perigo as crianças, as pessoas idosas e todos os que sofrem de doenças ou dificuldades pulmonares ou respiratórias. Vários prefeitos - uma espécie de governadores civis - decretaram então medidas de redução do transporte automóvel e favorecendo os transportes colectivos.


Mortes e incêndios
na Europa

Diz quem sabe que tais medidas deviam ir mais longe. Mas isso é em França. Em Portugal, as medições e as estatísticas são inexistentes ou quase. E ficaremos sem saber se se deveria tomar medidas ou se o País, cujos governos se gabam de correr no pelotão da frente, escapará, por falta de desenvolvimento, a estas doenças do desenvolvimento.
O certo é que Portugal não escapou à onda de calor que varreu a Europa e os incêndios devastaram já numerosos hectares de floresta. Isto apesar das juras do secretário de Estado Vara que estima ter tudo sob controlo - território, bombeiros e fogos. Apesar do presumido zelo governamental e de continuar a assistir-se ao filme que acompanha a ministra do Ambiente prometendo estruturas e legislações e de as notícias versarem mais as bandeiras azuis das praias e as praias sem bandeira, Portugal viveu - e certamente ainda vive no momento em que o leitor der conta destas linhas, mas não vale apostar nas previsões meteorológicas - semanas de altas temperaturas. Que o não livram da imprevisibilidade que parece ter vindo para ficar. Ainda no passado dia 12, em plena canícula, Bragança foi palco da tragédia provocada por uma grossa chuvada, acompanhada de granizo e trovoadas. Em resultado da tempestade, as inundações tomaram conta da cidade onde se registaram cortes de energia e elevados prejuizos materiais.
A onda de calor na Europa tem produzido maiores devastações, não apenas na região mediterrânica onde se faz sentir mais intensamente. Na Itália registavam-se na semana passada quatro mortos. Em Chipre tinham morrido 48 pessoas, 13 das quais num só dia; mais de um milhar haviam recebido tratamento hospitalar. Numerosos incêndios têm lavrado, nomeadamente em Espanha, Itália. Temperaturas superiores a 40 graus verificaram-se em vários países. E em alguns outros, mais a norte, pouco habituados à canícula, a temperatura do ar ultrapassou em muito os 30 graus - 34 na Bélgica, 31 na Inglaterra, 36 na Alemanha, 37 na Europa Central; a água do mar Negro, na costa Búlgara, chega aos 29 graus, a temperatura mais elevada dos últimos 110 anos. Na Turquia, o calor já fez mais de uma centena de mortes, enquanto as inundações matavam cerca de meia centena de pessoas.
Os calores do Verão não são eternos. Vão acabar, tal como acabam as férias. Mas ficam os problemas certamente, mesmo que deles a memória não dure. São problemas de todos. Não apenas dos cientistas que os detectam e analisam, não certamente dos políticos do capital que determinam o seu agravamento e alertam, de quando em quando, para os perigos de que toda a gente dá conta.

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Balanço assustador

A Agência Europeia para o Ambiente aí está com o segundo relatório - depois de haver publicado um primeiro em 1995, conhecido por «relatório Dobris». O objectivo é fazer um balanço da evolução de todos os tipos de poluição não só no âmbito dos países da União Europeia mas abrangendo todo o Velho Continente, incluindo os países da Europa Central e da antiga URSS. O inventário das malfeitorias ambientais é extenso e o balanço é assustador. Desde as emissões de gases aos lixos não tratados, passando pela poluição relacionada com a actividade agrícola e não esquecendo os fenómenos da erosão dos solos e da acentuada redução das zonas húmidas e dos lençóis freáticos, os sinais de uma grave doença que ataca o continente não cessam de manifestar-se e de aumentar.
Diz-se que o mal está no modo de produção e no modo de vida da população europeia. Estará? Sem avançar com uma opinião definitiva, aqui deixamos alguns males recenseados pelo relatório.

Transportes - «O sector dos transportes tornou-se na principal fonte de emissões de dióxidos de azoto, contribuindo com 60 por cento do total em 1995», assinala o relatório, referindo-se ao conjunto dos países da Europa. «Entre 1980 e 1994, o transporte rodoviário de mercadorias aumentou de 54 por cento; entre 1985 e 1995 o transporte rodoviário de passageiros aumentou de 46 por cento e o transporte aéreo de passageiros de 67 por cento.»
O jornalista Gérard Le Puil, de L’Humanité, onde respigamos alguns destes dados, comenta que, sobretudo na Europa ocidental, se faz notar a ausência de uma política concertada de promoção de transportes por vias férrea, marítima e fluvial. E cita o relatório: «Em numerosas cidades, os automóveis representam já mais de 80 por cento do transporte mecanizado. As previsões do crescimento dos transportes na Europa ocidental indicam que, para um cenário de manutenção do statu quo, as necessidades de transporte rodoviário de passageiros poderiam praticamente duplicar entre 1990 e 2010, aumentando o número de veículos de 25 a 30 por cento e o número anual de quilómetros por viatura subindo 25 por cento.»

Efeito de estufa - Contas feitas, o relatório conclui que, para evitar um agravamento do fenómeno de aquecimento do planeta superior a 0,1 grau centígrado por década no início do próximo século, os países industrializados deveriam reduzir as suas emissões de gases com efeito de estufa, nomeadamente o dióxido de carbono, o metano e o hemióxido de azoto, de, pelo menos, 30 a 55 por cento - relativamente aos níveis de 1990 - até 2010. E acrescenta que a União Europeia está lançada num aumento de 8 por cento de emissões de gases, em lugar de efectuar um recuo de, precisamente, 8 por cento, conforme se comprometeu ao aprovar o acordo de Kioto.

Lixos - No conjunto dos países considerados, a produção de lixos aumentou de 10 por cento entre 1990 e 1995 e, na maioria deles, a gestão dos lixos continua a ser ditada pelo menor custo possível, isto é, descarregando-os em simples lixeiras. O relatório insiste, no entanto, em que «a reciclagem tende a ser mais eficaz nos países que dispõem de uma sólida infraestrutura de gestão dos lixos.

Água - Água doce, água salgada, dois meios com problemas. Se, quanto à primeira, se verifica uma diminuição dos gastos industriais, o relatório aponta a agricultura como «o primeiro consumidor de água nos países mediterrânicos, destinada no essencial à irrigação». E sublinha que, «em certas regiões, o gasto de água dos lençóis subterrâneos ultrapassa a taxa de reposição, o que leva ao abaixamento do nível da superfície dessas reservas, ao desaparecimento de zonas húmidas e à invasão da água do mar». A partir daí, «a qualidade do lençol subterrâneo é afectada pelo aumento da concentração de nitratos e de pesticidas provenientes da agricultura. As concentrações de nitratos, fracas na Europa setentrional, são mais elevadas em vários países orientais e ocidentais, ultrapassando frequentemente as concentrações máximas admissíveis na União Europeia». Quanto aos mares, dois grandes perigos os ameaçam - o acentuado aumento do esforço de pesca e a poluição, com destaque para a concentração de matérias azotadas provenientes dos litorais como de metais pesados.

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Os calores
de Al Gore

Há dias, o «mundo» acordou sobressaltado. O Vice-Presidente dos Estados Unidos, Al Gore, viera à boca das rádios e ao papel dos jornais lançar um alerta. Todos supunham que viera para falar de mais algum episódio do folhetinesco caso que embrulha em folhas de processo o Presidente Clinton e a Secretária Lewinsky. Mas não. O caso parecia mais sério ainda, porque não se arriscava a abalar apenas os Estados Unidos deixando os outros a rir, mas envolveria o planeta inteiro. Al Gore anunciou ao mundo que o mundo está mais quente. Não se referia a guerras desencadeadas, controladas, mantidas ou fomentadas pelos Estados Unidos. Referia-se propriamente à temperatura da Terra, atacada de uma febre cuja causa, apontou ele, se deve aos gases que produzem o efeito de estufa. Segundo alertou, vai haver «mais vagas de calor, mais inundações, mais tempestades e ainda mais secas».

Se a gente não conhecesse a administração americana, dava-se por bom este alerta. Mas os políticos que mandam em Washington são os mesmos que se recusaram a assinar as recomendações da Cimeira da Terra, esse forum que pouco mais fez do que alertar para os perigos deste tipo de desenvolvimento industrial. Assim, o alerta de Al Gore mais parece um aviso aos seus parceiros do G7 - abrandem o vosso desenvolvimento para que os Estados Unidos possam continuar o seu sem grandes riscos planetários.
O próprio alerta, comentado por uma série de especialistas norte-americanos, não reúne consenso. Os números estarão certos. De facto, as temperaturas registadas nos últimos meses dão 1998 como «o ano mais quente do século», tendo a agência metereológica dos EUA registado uma temperatura média na Terra que atingiu em Julho deste ano os 16,5 graus Celsius, contra 16,25 graus do anterior máximo, verificado no mesmo mês do ano passado.

Julho de 1998, porém, não é um caso isolado, como refere a Lusa, reportando-se a «um estudo publicado por dois especialistas da universidade de Amherst (Massachusetts)». Tal estudo «conclui que os anos de 1997, 1995 e 1990 foram os mais quentes do hemisfério norte do planeta, desde o século XV». Em que ficamos?
Ainda de acordo com a Lusa, que cita aquela fonte, Tom Petterson, especialista do Centro de dados climatéricos da agência meteorológica norte-americana de Asheville (Carolina do Norte), afirma que «observamos, sem dúvida, um aquecimento desde 1880 até aos nossos dias. A primeira parte deste período foi mais fria que o período actual, e este ano é muito mais quente que os decénios precendentes (mas) não é um aquecimento uniforme». E a Lusa acrescenta que, «se os climatólogos reconhecerem a evidência do rápido aquecimento do planeta, ficam ainda divididos acerca da origem do fenómeno. A anomalia climatérica El Niño e a poluição humana continuam a ocupar o banco dos réus».
John Christy, da universidade de Huntsville (Alabama), assegura: «Se olharem os dados registados por satélite depois de 1979, constatarão efectivamente que os últimos meses foram os mais quentes desde há 20 anos.» Mas adianta: «Pelo contrário, se pegarem nos últimos 19 anos até Dezembro de 1997, a tendência é nula. Consequentemente, o calor de Janeiro a Julho deve-se claramente a El Niño.»
Aquecimento «natural» ou resultante da actividade humana, eis a questão. É difícil, no entanto negar os efeitos perniciosos desta última. Mas também é normal que desconfiemos destes alertas, vindos de quem vêm. À nossa memória tornam alguns alertas há muitos anos lançados. Quando os países produtores de petróleo, no princípio dos anos 70, se organizaram e decidiram estabelecer eles próprios o preço do barril de crude, não faltaram fontes «ocidentais» a estimarem o final, para breve, das fontes de energia fóssil. As reservas estavam a acabar e começava - lembram-se? - o «crescimento zero», enquanto os soviéticos respondiam que, ao ritmo do consumo, as reservas conhecidas então davam para mais 400 anos. Entretanto, nas cidades europeias, chegava-se a trocar o automóvel pela bicicleta e os carros passavam a circular em alternância na base do número da matrícula. O caos estava aí.
Novo caos deu alento às políticas neoliberais de Thatcher - o buraco do ozono, consequência da expansão do uso de FC's. Faltava lembrar que antes não havia modo de saber se buraco sempre houvera ou se o buraco constatado era ou não um fenómeno cíclico que não caberia nas recentes observações por satélite. Finalmente, chegou El Niño, que veio para quase tudo explicar, raramente se recordando que tal fenómeno, conhecido desde que há memória pelos pescadores da costa ocidental da América do sul, não era nada de novo. Quase todos os anos, pelo Natal, El Niño (O Menino), levava o peixe da costa. Ou será que o trazia de presente?

Agora temos o ozono de volta. Que não é uma benção. E ressuscita o efeito de estufa, há longos anos anunciado e hoje motivo de calores. Para o mundo, certamente. Para Al Gore, pelo menos.


«Avante!» Nº 1290 - 20.Agosto.1998