A TALHE DE FOICE

Clones, clowns e clintons


O mundo é um espectáculo e é preciso pagar para ver. Assim escrito, em tom de queixa, poderá parecer que se pretende desvalorizar os espectáculos ou menosprezar o dinheiro. Longe de nós sequer pensá-lo. Há espantosos espectáculos - sobretudo aqueles em que possamos participar activamente, provar do que acontece; e o dinheiro, enquanto representação que é do trabalho humano, merece todo o respeito. O que parece crescer no mundo, porém, é a substituição perversa do valor do trabalho pelo sucesso da sua apropriação. Ou a vida em que participamos pela representação mediática do que sucede.

Mais grave ainda, entretanto, parece ser o que vem cada vez mais acontecendo e que é a substituição progressiva do espectáculo pelo espectáculo do próprio dinheiro.

Não falamos aqui da estafada imagem da maleta cheia de dólares em que não há filme de acção que se preze que não mostre. Mas em uma série de espectáculos que nos mostram e de acontecimentos que nos reportam, em que o dinheiro parece ser a principal personagem.

Quando se anuncia, por exemplo, que Bill Gates vem aí a Portugal, fala-se do espectáculo que será um homem que está na origem de uma espantosa transformação do mundo através da sua intervenção conceptual e tecnológica na informática, ou do «homem mais rico do mundo»? Se calhar vêm ambos aí, com espectadores para receber os dois.

Aqui há dias, uma série de canais de TV - e entre nós a SIC - brindou os telespectadores com um anunciadíssimo espectáculo «ao vivo». Fomos ver, e o espectáculo era «ao morto». Tratava-se de imagens escuras e desinteressantes, que nada de novo acrescentavam, filmadas nas profundezas geladas, mostrando ferrugens turvas. Ali estavam os restos do Titanic, ali estava um par de «exploradores» enfiados num batiscafo. Cá «em cima», a conversa era sobre «números», como diria o gordo Jô Soares. Quantos milhões disto, quantos milhões daquilo. Uma lâmpada fundira-se e custava quatro mil contos. O programa, aliás, não tinha outra finalidade se não a de pagar-se a si próprio, já que todo o processo de «exploração» dos salvados do tristemente célebre paquete tem vindo a revelar-se deficitário. Quem tem ganho, até hoje, com o espectáculo, têm sido os fazedores de espectáculos que anunciam os milhões gastos na produção de um filme como aperitivo ao seu visionamento.

Há dias também, uma entrevista sobre a interessantíssima e inquietante questão da clonagem, descambou rapidamente para o dinheiro - um maduro americano dispunha-se a pagar três mil milhões de dólares - por favor façam as contas, que a minha calculadora pifou - para lhe «clonarem» um cão.

O próprio assunto da moda - o caso da relação «imprópria» de Clinton com a secretária Lewinsky com que se pretende lançar poeira nos olhos dos americanos e dos distraídos do mundo inteiro, desliza vertiginosamente para os dólares, procurando o casal Clinton desvalorizar a embrulhada valorizando os 40 milhões de dólares que os «contribuintes» pagam pelo processo. Notícia foi também o valor da «dentadinha» num bolo com a cara da Lewinsky: quatro contos.

Mas já repararam que temos estado a falar exclusivamente dos Estados Unidos?

Há razão para isso. O estilo, a «visão», a concepção do mundo e da vida é profundamente marcada pelo «pensamento único» que os EUA comandam e pretendem reforçar. E as repercussões de tal «pensamento» não deixam de atingir profundamente as consciências em qualquer lugar do planeta onde nos encontremos. Em Portugal, por exemplo, quase não se fala de outra coisa que não tenha origem no país dos clintons, dos clones ou dos clowns. E, quando se abordam outras questões quentes, mais próximas das nossas preocupações, lá resvala o assunto para o montante do espectáculo, desvalorizando o cerne da questão. Assim é com a corrupção na Expo, onde a parangona sublinha os milhões e desvanece o fenómeno. Assim foi há dias, numa breve entrevista numa rádio, em que a jornalista, falando com um guineense sobre o bloqueio da ajuda humanitária pelas tropas senegalesas, perguntava em voz pertinente: «E são quantas toneladas de ajuda?» — Leandro Martins


«Avante!» Nº 1290 - 20.Agosto.1998