"Hermano I - O Firme"


Divertidíssima, esta entrevista de Hermano Saraiva ao Diário de Notícias. Nela, o consagrado estoriador conta-nos como e por que razões foi convidado e aceitou integrar o Governo de Salazar; descreve-nos, em vivíssimos quadros, os últimos anos de vida desse "homem de nível superior"; ensina-nos da "perda nacional" que foi a sua morte.
Segundo Saraiva, o ditador fascista, perdão: Salazar, manteve-se "lúcido" até à morte, "não dizia coisas sem nexo", antes pelo contrário. E num suspiro: "Um homem atingido por uma doença grave, mas, tomara eu, no fim da vida, ter aquela maneira de ver. Nunca disse tolices, não trocou palavras, não hesitou". (Não sei porquê mas algo me diz que este desejo de Saraiva é , já, inconcretizavel).

Diz Saraiva que quando, um belo dia, em Junho de 1968, Salazar o convidou para o Governo , lhe objectou que, na sua modesta opinião, "um ministro da Educação" deveria ser "professor universitário". Mas: "Eu penso o contrário" - contrapôs-lhe o Chefe - "penso que o Ministério da Educação precisa é de um pedagogo, de um homem que saiba ensinar". Numa derradeira tentativa, Saraiva avançou então com a Grande Objecção: disse-lhe - apreciem a coragem do homem! - que "fazia parte dos seus opositores"!. "Mas ele sorriu e respondeu: 'Eu sei. Eu conheço bem a sua posição política e é exactamente por isso que o estou a chamar para ao Governo". Face a tais argumentos e a tamanha abertura democrático-pluralista , estoriadas na entrevista em discurso directo, Saraiva rendeu-se e aceitou o cargo. Que, é justo que se diga, cumpriu exemplarmente, como era de esperar de um verdadeiro opositor do regime .

Talvez por modéstia, no entanto, Saraiva não nos fala da sua prestação à frente do Ministério da Educação, da forma como aplicou as suas qualidades de "pedagogo", de "homem que sabia ensinar". Mas está na memória de quem tem memória a vaga de "pedagogia" desencadeada às suas ordens: as prisões , espancamentos e torturas de estudantes, a pedagógica e inovadora medida de utilizar a polícia de choque, os gases lacrimogéneos e os cães polícias, juntamente com a inevitavel pide, contra os estudantes ; e também o assalto e encerramento de associações de estudantes, o encerramento das universidades de Coimbra e Lisboa, as ruas de Coimbra patrulhadas por jeeps e carros da polícia - tudo isto e muito mais para, como o então ministro Saraiva dizia, combater "a onda de anarquia", "a crescente onda de indisciplina"; e sempre, sempre exibindo a sua condição de "opositor do regime". De tal forma que, um dia, em Setembro de l969, na sequência de brutal repressão a uma manifestação de milhares de estudantes, Saraiva apareceu na Televisão a "saudar os estudantes e as suas famílias". É de homem! Mais: é de opositor! Aliás, de opositor unânimemente reconhecido: pelos estudantes como se pode ver nas fotografias da época; por Salazar que sabia o que dizia quando lhe disse: "Eu conheço bem a sua posição política e é exactamente por isso que estou a chamar ao Governo". — José Casanova


«Avante!» Nº 1290 - 20.Agosto.1998