Congo: um filme que já vimos

Por José Casanova
Membro da CP do CC


O artigo de Albano Nunes "Conspiração contra a RD do Congo?", aqui publicado há duas semanas, é um valioso contributo para a compreensão da situação actual no Congo. Trata-se de uma análise clarificadora mesmo quando nos surge em forma de interrogações - interrogações a que, nalguns casos, os acontecimentos posteriores têm dado resposta.

Apreciando os acontecimentos de que vamos tendo notícia e a forma como eles são tratados na generalidade da comunicação social dominante, temos a sensação de estar a ver uma espécie de série televisiva que dura há quatro décadas e na qual os governos dos EUA, da Bélgica e da França são protagonistas permanentes. É objectivo deste meu artigo revisitar o Congo, ainda que superficialmente, de Junho de 1960 a Janeiro de 1961, ou seja, desde a sua independência até ao assassinato de Patrice Lumumba - figura notável do movimento de libertação, um dos primeiros grandes dirigentes africanos. (1)

A independência do Congo foi proclamada em 30.6.60 na sequência de um processo em que os colonialistas belgas tudo fizeram para criar uma situação que tornasse indispensavel a continuação da sua presença no país. Democraticamente, é claro...Só que, das eleições por eles organizadas e controladas, saíu eleito, surpreendentemente, Patrice Lumumba - o qual no discurso da cerimónia da independência, na presença do rei Balduino, "em vez de incensar o colonizador e a sua 'obra civilizadora', recordou os sofrimentos do seu povo", afirmou a vontade de fazer do Congo um país livre e soberano com o povo a decidir o seu próprio destino, informou da decisão de retirar de imediato aos belgas o controlo da economia congolesa. Acresce que Lumumba gozava de grande apoio popular, a ponto de ter conseguido o apoio de todas as tribos: "o povo congolês acreditava nele, seguia-o, amava-o". Além de tudo isso ousara opor-se frontalmente a Hammarkjöld, secretário geral da ONU, e pedira auxílio à União Soviética... Ora um homem destes é um perigo: e desde o início, "para os belgas e os americanos, Lumumba é um homem a abater". Para isso lá estavam os serviços secretos belgas, depois a ONU e, acima de tudo e de todos, a omnipresente CIA.

Nesses meses quentes de meados de 1960 funciona, a partir da embaixada dos EUA , uma ampla rede de agentes da CIA dirigida por Larry Devlin. Entre os ciáticos activistas destacam-se Franck Carlucci (exactamente:esse mesmo... ) e Joachim Maitre

(indivíduo de origem alemã que, posteriormente, participou em várias missões especiais dirigidas por Oliver North: ao lado dos "contra" na Nicarágua, depois ao lado dos mujhadins afegãos, depois em Angola ao serviço de Savimbi). Com estreitas ligações e muita influência na CIA, destaca-se igualmente o norte americano Maurice Tempelsman, poderoso negociante de diamantes que, na altura, tem a trabalhar para si dois advogados cheios de futuro: Stevenson (que viria a ser embaixador dos EUA na ONU) e Sorensen (que viria a ser conselheiro de Kennedy). A tarefa que têm é a de eliminar Lumumba, inverter o curso dos acontecimentos no Congo e instalar os interesses do imperialismo norte americano naquele riquíssimo país. É nesse espaço que se movimenta também Mobutu, que acumula as ligações à CIA com a condição de

agente dos serviços secretos belgas - e que, entretanto, aderira ao Movimento Nacional Congolês, o partido de Lumumba. Após a independência, Lumumba ingenuamente nomeia-o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e, dias depois, chefe do Estado Maior das Forças Armadas.

A 11 de Julho, Tshombé - apoiado por grupos financeiros belgas - proclama a secessão da província de Katanga, rica nomeadamente em cobre e cobalto. O governo francês, que considera Lumumba "um perigoso agitador próximo de Moscovo", apoia Tshombé. Na semana anterior ocorrera, estimulada por Mobutu, a revolta da guarnição de Thysville e um mês depois o Kasai do Sul segue o exemplo do Katanga. Lumumba ordena uma ofensiva militar contra os separatistas do Kasai do Sul. Os soldados, obedecendo a ordens directas de Mobutu, provocam um banho de sangue entre a população. O massacre provoca a indignação nacional e internacional e Lumumba é apresentado como o responsável. Face à situação, o Conselho de Segurança da ONU decide , ainda em Julho, enviar para o Congo 19 mil "capacetes azuis" com o objectivo de "restabelecer a ordem interna". O governo dos EUA contribui com 40% dos custos da operação e as forças da ONU irão comportar-se como "um agente dos EUA".

Entretanto, Mobutu no prosseguimento do seu plano concebido com a CIA procede a uma intensa acção de denegrimento do governo e de Patrice Lumumba e a 5 de Setembro o presidente Kasavubu, obedecendo a ordens da Embaixada dos EUA, destitui o Primeiro Ministro eleito. Lumumba não acata a decisão, mas tem contra ele os governos dos EUA, da França, da Bélgica, além da ONU... Os "capacetes azuis" ocupam a Rádio Nacional de forma a impedir que Lumumba se dirija ao povo e impedem as tropas que lhe são leais de chegar à capital.

Está, assim, criada a situação ideal para o golpe de Mobutu que ocorre a 13 de Setembro e tem como consequência imediata a deposição de Kasavubu e de Lumumba e a chamada de um grupo de jovens intelectuais que estudam na Europa e têm "contactos mais ou menos regulares com a polícia secreta belga". Um deles, Bomboko, viria a ter anos depois pesadas responsabilidades no sádico assassinato de Pierre Mulele.

Lumumba fica com residência fixa vigiado por tropas da ONU e começa, desde logo, a preparar a sua fuga que virá a concretizar em fins de Novembro. É seu objectivo chegar a Stanleyville, a sua cidade, onde conta com apoios que lhe permitirão estar em segurança e relançar a actividade. Mas a viagem, que deveria ser discreta e rápida, transforma-se numa demasiado lenta caminhada triunfal, com milhares de pessoas obrigando-o a parar e a falar-lhes. E em 2 de Dezembro é preso pelas tropas de Mobutu (graças à preciosa ajuda do Embaixador dos EUA, Clare Templeton) e reenviado para a capital. É conduzido à residência de Mobutu na presença do qual é agredido, torturado, obrigado a engolir um comunicado onde se afirmava chefe do governo legal do Congo. "Batam-lhe mas não o matem", ia dizendo Mobutu.

Dali é conduzido à base militar de Thysville. Mas, receando que ele persuada os soldados a libertá-lo, decidem transferi-lo para um lugar seguro. Katanga é o cadafalso escolhido...

Depois de sadicamente humilhado e torturado durante a viagem, foi entregue aos homens de Tshombé. A 17 de Janeiro de 1961 é levado para a floresta e assassinado. Uns dias depois uma equipa dirigida por europeus foi procurar o corpo e fê-lo desaparecer. Enterrando-o? Não: utilizando o método que durante quatro décadas haveria de merecer as preferências de Mobutu: dissolvendo o corpo em ácido.

Lumumba, referência incontornável do movimento de libertação nacional, revolucionário consequente e corajoso, dirigente político altamente prestigiado, foi o primeiro de milhares de «mortos sem sepultura» vítimas de Mobutu, cujo longo reinado foi uma sucessão ininterrupta de barbaridades, de violências, de crimes brutais. Desde o assassinato de Lumumba em 1961 até ao massacre de Lubumbashi em 1990 (um dos mais cruéis massacres da história contemporânea e até hoje completamente silenciado pela comunicação social dominante no nosso país) dezenas de milhares de pessoas foram torturadas e assassinadas às ordens do sanguinário ditador. Foi certamente esse currículo que abriu a Mobutu a porta grande do templo da sagrada família dos defensores dos direitos humanos autenticados pela CIA. E há-de ter sido igualmente essa a razão pela qual «le Président Mobutu» teve a subida honra de integrar a galeria de amigos do dr. Mário Soares.

Uns dias depois do assassinato de Lumumba, lá longe... ali tão perto, John Kennedy era eleito presidente dos EUA e um dos seus primeiros actos foi o de escolher para primeiro ministro do Congo um tal Cyrille Adoula, homem de toda a confiança do imperialismo norte americano. Por seu lado, a CIA e as forças da ONU decidem sobre a composição do novo governo de modo a assegurar que Adoula cumpra a tarefa que lhe está destinada. Esta mascarada foi denominada pelo departamento de Estado norte americano como "um acto de fé no processo democrático".

Patrice Lumumba é, ainda hoje, o único dirigente congolês que foi eleito democraticamente. É significativo que tenha sido destituído e assassinado às ordens de uma trempe - Bélgica, França, EUA - de fervorosos defensores de um conceito de democracia que tem, segundo dizem, o sufrágio universal como um dos pilares essenciais...

(1) Este relato de acontecimentos é feito a partir de trabalhos de Colette Braeckman e Jean Ziegler


«Avante!» Nº 1292 - 3.Set.98