Canções de Atalaia

«Não fiques para trás oh companheiro
É de aço esta fúria que nos leva»
(...)

(«Jornada», José Gomes Ferreira, «Canções Heróicas» de Fernando Lopes-Graça)

O espectador mais atento à progressiva definição do espectáculo que preencheu na noite inaugural da «Festa» deste ano a programação do Palco 25 de Abril terá seguramente intuído a estreita ligação das palavras vigorosas e mobilizadoras do poema de José Gomes Ferreira ao ímpeto metálico dos sons que constituíram a base do acompanhamento instrumental à voz do barítono Jorge Vaz de Carvalho.

Estávamos sensivelmente a meio de «Canções de Atalaia», uma suite para vozes solistas e orquestra encomendada ao compositor Zé Eduardo a partir de um alinhamento definitivo de pouco mais de duas dezenas de canções, fruto de sucessivos rastreios e escolhas, e representativas (tal como outras o teriam sido) de situações de luta, resistência, revolução, um pouco por todo o mundo, em pouco mais de dois séculos de História.

Na realidade, a heterodoxa versão de Jornada representava, porventura, o afloramento mais radical de um projecto na génese do qual se pretendeu estivesse presente a evocação das memórias que marcaram cada uma das canções integrantes da peça, face à diversidade geracional dos seus potenciais fruidores e independentemente da linguagem musical e do contexto instrumental que livremente estimularam e inspiraram o autor material deste tão exigente quanto complexo empreendimento artístico.

Por isso não deixaram de ser também transparentes, em outros momentos da longa peça, quer a reprodução quase textual das inconfundíveis harmonias e saltitante frescura melódica de outra «Heróica» - Cantemos O Novo Dia (do mesmo Lopes-Graça) - quer a profunda transfiguração de canções como La Varsovienne, La Carmagnole, If I Had a Hammer ou Bandiera Rossa, quer a maior proximidade e identificação estilística aos originais de temas como Guantanamera, Canto Moço ou Hasta Siempre Comandante - numa assumida diversidade e confluência dialéctica de propostas musicais, sem anátemas ou exclusões estéticas quanto às suas várias formas de expressão. No fundo, em inteira correspondência ao que têm sido neste domínio, desde há 22 anos, os propósitos programáticos do conjunto de espectáculos das Festas do «Avante!».

Para o êxito e o entusiasmo que o concerto de sexta-feira provocou no público que enchia o recinto frente ao Palco 25 de Abril contribuiu, assim, e em primeiro lugar, o arrojado e brilhante trabalho de composição e arranjos levado a cabo por Zé Eduardo – que a chuva persistente até hora tardia e consequente impossibilidade de ensaio geral (musical e de som) em pleno palco, quase iam irremediavelmente comprometendo. Um trabalho recheado, ainda, em vários interlúdios e medleys instrumentais, de referências explícitas ou implícitas a Internacional, Katiusha, Die Moorsoldaten, Wich Side Are You On? ou Bella Ciao, entre outras canções e hinos revolucionários de diversos tempos e paragens.

Depois, revelou-se inteiramente adequada a escolha das vozes solistas: a soprano Helena Afonso, de admirável musicalidade e expressão vocal em La Varsovienne ou Bandiera Rossa; o barítono-baixo Jorge Vaz de Carvalho, poderoso de intenção e vigor em Jornada ou Down By The Riverside; a inteligência e força expressiva de Amélia Muge no Chant des Partisans ou em Traz Outro Amigo Também; o traquejo jazzístico, salsero e mesmo sambista de Carme Canela em Guantanamera ou Upa Neguinho; ou a recriação... descontraída de Jorge Palma em This Land Is Your Land ou Casey Jones.

Referência de inteira justiça é ainda devida, por último, à intervenção da orquestra, na qual se têm de destacar a segurança e o profissionalismo da secção ritmica, com Joan Monné, Riqui Sabatés, André Sousa Machado e Acácio «Salero» funcionando em torno de um eixo decisivo, Armindo Neves; o recatado brilhantismo instrumental de Artur Fernandes no acordeão e na concertina; a elevada qualidade do naipe de saxofones, com o alto de Perico Sambeat e o soprano de Antonio Mesa em primeiro plano; e o impacte das secções de metais, com destaque para o trombone de Sergi Vergés e o trompete de Jack Walrath.

Enfim, «Canções de Atalaia», embora fortemente prejudicado na recta final da sua produção e concretização por inesperadas e indesejáveis intromissões climatéricas, constituiu em última análise mais uma aposta invulgar e original, a exemplo de outras inteiramente ganha.

E para o ano... há mais!

F.C.