Auditório 1º de Maio Os vários mundos da música |
Um rapaz de 5 anos
está à porta do Auditório 1º de Maio. Os pais dançam a um
ritmo certo, enquanto ele, com o braço esquerdo estendido na
diagonal, dedilha uma guitarra imaginária. Ao som da música que
vem do palco, fecha os olhos e bate com o pé no chão.
A noite de Sexta-feira começa bem. Os portugueses Charlie
Blue Cats entusiasmam o público. O rapaz não é o único a
«coçar» a barriga, há muita gente a fazê-lo na plateia. Há
também muitas pernas a mexer, muitas cabeças a abanar, muitos
corpos a rodar.
Uns estão com os olhos no palco, mas a maioria está concentrada
em si própria. Olham para dentro, sentem-se, palpam o espírito,
revivem emoções antigas. É o efeito natural dos blues.
Quando o ritmo acelera e a música muda de tom, levantam os
olhos. Afinal há gente à volta e a música que ouvem não sai
de dentro de si. Ah, o que faz um bom blues e um pouco de
concentração!
A Festa é o local certo para conhecer melhor o mundo. Se nos
misturarmos com a multidão, acabamos sempre por conhecer novas
pessoas e protagonizar novas histórias. Se nos afastarmos um
pouco (tarefa bastante difícil de cumprir na Atalaia...),
surgem-nos naturalmente reflexões sobre os episódios a que
assistimos. E o primeiro pensamento que nos assoma relaciona-se
inevitavelmente com os diversos mundos que a Festa comporta em
si: o convívio de várias gerações, a coexistência de
hábitos distintos, a comunicação entre inúmeras
interpretações artísticas da humanidade...
Os espectáculos não fogem à regra, e cada um transporta
consigo uma diferente perspectiva de encarar a vida que é
implantada na Atalaia durante as actuações. Foi assim que
aconteceu na noite de sexta-feira no Auditório: primeiro o Grupo
Étnico Chinês de Guizhou, depois os Telectu.
Por volta das 22h30, os chineses originários da província de
Guizhou sobem ao palco. A música não engana - é a Ásia que
chegou à Festa. O mesmo grupo que animará no dia seguinte o
palco de Setúbal, enfeitiça o Auditório com o seu folclore, o
seu vestuário colorido e as suas lindíssimas máscaras.
Mais tarde, é a vez de Vítor Rua e Jorge Lima Barreto actuarem,
acompanhados pelo trompetista francês Jac Berrocal e o baterista
Eddie Prévost. Os Telectu, uma das bandas habituais da Festa,
possuem um público fiel que acorre todos os anos ao Auditório
para assistir aos seus espectáculos.
Constituíndo um caso praticamente único no panorama musical
português, esta banda oferece um som experimentalista e
minimalista já consagrado internacionalmente. Este ano, Vítor
Rua trouxe uma nova guitarra - única no mundo - com dois pickups
e dois botões reguladores, que funciona também como baixo.
Abrir a revista da
Festa é um gesto repetido um sem conta de vezes por quem visita
a Atalaia. Uns nomes ficam na memória, outros perdem-se perante
as muitas distracções. E volta-se a abrir a revista. E sábado,
o que há para ver?
O Auditório oferece ao princípio da tarde os irlandeses The
Wingers. O sucesso verificado junto da audiência não
constitui surpresa. A música celta tem muitos admiradores e
mesmo quem não tem por hábito ouvi-la é imediatamente
contagiado.
Os quatro irlandeses que actuam no palco só descansam para ouvir
os aplausos das muitas pessoas que os ouvem. De vez em quando,
Zack Smyth tira uma nova flauta do bolso e prende a audiência
com a sua música. Depois de quase uma hora de espectáculo,
despedem-se do público. Mas este obriga-os a voltar. Mesmo com o
percalço de uma corda da viola partida durante a actuação, os
The Wingers apresentaram um grande espectáculo, próprio de um
grupo que já acumulou experiência em palcos portugueses,
espanhóis e irlandeses.
A revista é novamente aberta. «Falta muito para o Luis
Pastor?» «Não, é já a seguir.» O músico espanhol entra
com a sua descontraída banda para uma actuação repleta de
canções de intervenção e de experiências pessoais. Todas as
ocasiões são propícias para se tornarem inspiradoras de novas
músicas. Como disse Pastor, até a espera do barco que segue de
Setúbal para Tróia.
Numa contínua comunicação com o auditório, canta Zeca Afonso
e clama por uma sociedade mais justa. Sempre descalço, Luis
Pastor dá lugar, a certa altura, ao jovem cubano que o
acompanha. Barbeiria, que até então tinha ritmado as canções
com uma batida hip-hop usando como único instrumento a
boca, pega na viola e mostra que também sabe tocar. A sua
pronúncia cubana delicia quem o ouve, e - como é próprio da
Festa - junto com as palmas, recebe um coro de vozes que pede o
fim do bloqueio norte- americano.
Com uma guitarra a tiracolo, um homem entra sozinho no palco
pouco tempo depois. Traz um sorriso aberto e os olhos brilhantes
de quem está bem consigo próprio, de quem se sente seguro
perante o mundo. É o norte-americano Si Khan, um dos
principais protagonistas dos movimentos sindicais e da luta pelos
direitos civis nos EUA.
Todas as canções que interpreta são explicadas por ele
próprio num português de principiante, ajudado com frequência
por uma tradutora. Por elas passam os seus ideais e as suas
convicções, as suas batalhas e o seu empenho. Isto quer dizer,
direitos das mulheres, direitos dos negros e direitos laborais,
mas também a Guerra Civil de Espanha e o Partido Comunista dos
Estados Unidos.
O homem que à primeira vista podia parecer demasiado só para um
palco tão grande, revela-se aos portugueses um contador de
histórias e um lutador inveterado que inspira quem o escuta e
impulsiona o combatente que há em nós.
Para essa tarde restam ainda as actuações de João Afonso
e de Dick Gaughan. O português trouxe consigo as suas
influências africanas e a inspiração em Zeca Afonso, seu tio e
padrinho musical. O álbum «Missangas» constituiu a base de um
espectáculo que provou que as canções de João Afonso são
bastante populares junto do grande público.
Dick Gaughan, também acompanhado apenas por uma viola,
iniciou a sua actuação numa homenagem a Si Khan, seu amigo de
longa data. Apresentando-se como um escocês que só sabe falar
«scotish», interpretou várias baladas evocativas da vida
quotidiana no seu país de origem.
Com um vestido branco, imaculado como a sua voz, Maria Anadon
representou o Jazz na Festa. Conhecida essencialmente pelos
amantes deste estilo musical, Anadon recriou temas de bandas
sonoras de filmes portugueses, provocando paixões imediatas no
público. O auditório encheu-se aos poucos de pessoas,
comentário e sorrisos, formando-se uma grande família que, na
sua maioria, descobria pela primeira vez aquela que foi
considerada a Cantora de Jazz Revelação de 1995.
Uma das surpresas da Festa teve lugar em seguida, durante o
recital de Jorge Vaz de Carvalho acompanhado por Carla
Seixas. Surpresa para todos: para quem percebia que um
barítono e uma pianista afinal não é nada que assuste, e para
os artistas que em cima do palco se congratularam com os
intensivos aplausos da audiência. Cantava-se Paul Robeson e
George Gershwin. O silêncio na plateia era interrompido apenas
no final de cada interpretação quando as palmas eclodiam. Mais
uma, pedia o público. E Jorge Vaz de Carvalho e Carla Seixas
atendiam.
Paulo Bragança encerrou a noite com uma grande dose de
emoção. O palco é, de facto, o seu território privilegiado e
a intensidade das suas interpretações tem como veículo uma voz
ímpar. O Auditório foi envolvido num ambiente de encanto,
suspenso das palavras, dos gestos e da melancolia do fadista. No
fim, José Manuel Osório subiu ao palco para um dueto
memorável.
Depois da música
tradicional curda e do rock de Flak, o domingo
registou uma brilhante actuação do jovem guitarrista Manoel
d'Oliveira. Manejando a guitarra acústica com grande mestria
e revelando-se senhor de grande carisma, Manoel d'Oliveira foi
acompanhado por uma segunda guitarra, baixo, contrabaixo e
percussão.
E o grande final aproxima-se. É já impossível entrar no
auditório. As pessoas estendem-se até ao lago, esperando por Sérgio
Godinho. Para o público, os técnicos demoram demasiado
tempo a preparar o palco. «Sérgio! Sérgio! Sérgio!», gritam
em coro. As gargantas estão a postos, as máquinas fotográficas
também, só falta ele.
Sérgio Godinho não desilude ninguém e começa por dar uma
novidade que poucos sabem mas que muitos anseiam por conhecer: o
resultado do jogo Portugal-Hungria. Primeiro a solo, depois com a
banda, o espectáculo incluiu canções dos seus grupos
preferidos nomeadamente os Beatles, Doors e Zeca Afonso.
Descrever um espectáculo do Sérgio Godinho é tarefa ingrata e
inútil, pois, se por um lado é difícil falar da agitação que
varre o público, da entrega dos que o ouvem e da emoção que a
todos atinge, por outro não há ninguém que não conheça a
música e o talento do artista. Posso, contudo, tentar adjectivar
a actuação que encerrou a programação do Auditório:
impressionante, pela adesão de toda aquela gente; admirável,
pela perícia dos músicos em palco; inesquecível, pela
comunhão de sentimentos.
Uma nota especial para o baterista Kalu. Poucos músicos mostram
simultaneamente um prazer tão acentuado em tocar, uma tão boa
disposição e um tão grande à vontade frente ao público.
Irreverente por natureza, o baterista dos Xutos e Pontapés
cantou («O Charlatão»), mudou de penteado e ensinou o público
a acompanhar Sérgio Godinho com estalar de dedos. E tudo num só
espectáculo.
Isabel Araújo Branco